Quando minha filha tinha 3 anos de idade ela começou a voltar da escola com marcas de mordidas no rosto. Pouca coisa se ouvia até então sobre o tal do bullying, o ato de usar o poder ou força para intimidar, excluir, implicar e humilhar, situação que ficou amplamente conhecida após o lamentável episódio do massacre ocorrido em uma escola do Rio de Janeiro, onde se constatou posteriormente que o ex-aluno Wellington de Oliveira, autor da chacina de 12 crianças no Realengo, era vítima de bullying naquela escola. Provavelmente com algo mais que os traumas carregados pelas humilhações e violências que sofreu, como um transtorno mental severo, o ex-aluno entrou atirando na escola e matou 12 alunos que ele sequer conhecia, com o intuito de se vingar das humilhações sofridas por ser considerado diferente dos colegas.
Na época que minha filha tomou as mordidas na cara, eu fui até a escola, e a diretora afirmou que não sabia o que era bullying e que achava que situações como as mordidas que minha filha recebia eram normais, pois crianças pequenas ainda estão aprendendo a se socializar. Em contato com os pais do aluno que mordia minha filha, ouvi algo parecido: Me disseram que eles são crianças, estão em pé de igualdade e tem de aprender a resolver seus problemas sozinhos. Fiquei muito indignado, pois no mundo adulto a malfadada socialização a que se referiu a diretora da escola e os pais do aluno não inclui, que eu saiba, a prática de humilhações e violências físicas ou psicológicas.
Mas o que tem em comum um ato tão brutal como o massacre do Realengo e as mordidas na minha filha? Penso que a inevitável linha do tempo, onde tudo começa com uma despercebida mordida no rosto e diante do descaso e do descuido da escola e dos pais dos alunos, um belo dia um aluno mais sensível ou transtornado resolve se vingar. Situações assim são encontradas em todo o mundo: muitas pessoas devem se lembrar do massacre de Columbine, nos EUA, onde fato semelhante ao ocorrido no Realengo abriu os olhos da nação americana para o perigo do comércio indiscriminado de armas de fogo.
Pessoalmente, não acredito que a prática do bullying tenha se tornado mais comum do que sempre foi; ocorre que as pessoas estão mais cientes dos seus direitos, melhor informadas, e consequentemente, mais preocupadas com o futuro de seus filhos, não importando aí se são pais de crianças ou adolescentes vítimas de bullying ou autores dessa prática hedionda. O bullying gera uma ferida que atinge a todos seus personagens: estudos comprovam que o bully (o aluno valentão), por exemplo, tem uma tendência maior ao crime; a vítima, de outro lado, pode desenvolver patologias, como, por exemplo, Transtorno do Pânico, Fobia Escolar, Fobia Social (Transtorno de Ansiedade Social - TAS), Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), Depressão, Anorexia, Bulimia, Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), todos estes catalogados na relação CID-10, editada pela Organização Mundial de Saúde e seguida pelas entidades psiquiátricas do ocidente.
Não faz muito tempo que as escolas abandonaram a palmatória, símbolo da autoridade onipotente de um sistema educacional rígido e sem sentido algum, mas cegamente obedecido pelos alunos e seus pais, que viam no educador uma autoridade capaz de ditar até os castigos físicos de seus filhos, se eles cometessem algum excesso. Essa modificação radical do regime escolar opressivo para uma escola mais aberta e flexível traz a tona muitas situações que evidenciam a má formação dos educadores que simplesmente não conseguem driblar os comportamentos violentos dos alunos. Assim, aquele que pratica o bullying de alguma forma também está sofrendo pela deficitária atuação familiar e educacional. Seria correto afirmar, nesse raciocínio, que a escola merece ser responsabilizada quando, debaixo de seus olhos, essa prática hedionda se revela?
A escola é instrumento de inclusão social, tal qual a família, a sociedade (onde a escola particular se insere) e o Estado (onde a escola pública se insere). A Constituição Federal orienta que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente os direitos essenciais ao seu bom desenvolvimento. Assim, se a escola tem o dever legal de proteger os alunos e evitar a lesão a sua integridade física e psíquica, a simples falta com esse dever, ainda que sem a ocorrência de culpa por parte da escola, pode gerar a responsabilidade civil do estabelecimento de ensino. Se a escola é pública, a responsabilidade é do estado (município, estado ou união, dependendo do estabelecimento). Se a escola é particular, a responsabilidade é da própria instituição. Essa é a responsabilidade objetiva traçada no atual Código Civil vigente e fundada na teoria do risco, onde a atribuição de culpa para caracterizar a responsabilidade é irrelevante.
Na falta de legislação a respeito do tema bullying, quem decide é a justiça. E as decisões parecem sinalizar exatamente no sentido da responsabilidade objetiva: No Rio de Janeiro, por exemplo, num julgamento recente, de 2 de fevereiro de 2011 (13ª Câmara Cível, Acórdão relatado pelo desembargador Ademir Pimentel), com base na responsabilidade objetiva do Código de Defesa do Consumidor, uma escola particular foi condenada a indenizar uma menina de 7 anos, que ao longo ao ano letivo sofreu toda espécie maus tratos. Ela foi espetada com um lápis na cabeça e arrastada, era xingada, levava socos, chutes e gritos no ouvido. Como conseqüência dos maus tratos dos colegas precisou de ajuda médica. O diagnóstico apontou manifestação de fobias; dificuldade para ir à escola; insônia; terror noturno; e sintomas psicossomáticos, como enxaqueca e dores abdominais. Passou a ser tratada com antidepressivos e no fim do ano letivo, mudou de colégio. Interessante mencionar ainda sobre este caso, que para o relator do recurso, desembargador Ademir Paulo Pimentel, a escola onde a menina estudava tinha culpa nos fatos: Com efeito, o colégio réu tomou algumas medidas na tentativa de contornar a situação, contudo, tais providências foram inócuas para solucionar o problema, tendo em vista que as agressões se perpetuaram pelo ano letivo. Em outras palavras, com a tendência de julgamentos no sentido da responsabilidade objetiva, as escolas, públicas ou privadas devem começar a se preocupar em tomar todas as precauções necessárias a cumprir com seu dever de guarda dos alunos enquanto sob sua responsabilidade.
Mas não é só a escola que pode ser responsabilizada pelo comportamento dos menores de idade que cometem o bullying: os pais dos alunos que vitimizam outros com a prática hedionda do bullying também podem ser responsabilizados e arcar com indenizações na justiça. A responsabilidade civil dos pais, pelos atos dos filhos menores, está prevista no artigo 932, inciso I, do Código Civil. Diz referido dispositivo:
"São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
Nesse sentido, vale lembrar outra forma comum de bullying que vem ocorrendo com certa freqüência e fora do ambiente escolar: o cyberbullying, onde as ofensas e humilhações a uma pessoa ocorrem no âmbito da internet. Como exemplo, cito o caso de um adolescente que entrou com ação de indenização na Comarca de Carazinho, alegando que fotos suas foram alteradas e com elas foi criado um fotolog em seu nome e hospedado na página do provedor Terra. No fotolog, foram postadas mensagens ofensivas ao adolescente e foram feitas montagens fotográficas nas quais ele aparecia ora com chifres, ora com o rosto ligado a um corpo de mulher. Obtida liminar contra o provedor Terra para saber de quem partiram as ofensas, o adolescente descobriu que vinham do computador da mãe de um outro aluno de sua escola. No processo contra os pais do ofensor, o adolescente sustentou que a mãe do criador da página deveria ser responsabilizada, já que as mensagens partiram de seu computador, bem como o provedor, por permitir a divulgação do fotolog. A justiça entendeu e proferiu em sentença que mãe deveria de pagar indenização de R$ 5 mil pelos danos causados ao colega de classe de seu filho.
Outra questão que interessa ao adolescente que é vítima de bullying é sobre a suposta impunidade dos agressores, já que normalmente são outros adolescentes menores de 18 anos. Não é demais lembrar que apesar de não cometer crimes, os adolescentes que infringem dispositivos da lei penal aplicável aos adultos cometem atos infracionais e podem em algumas circunstâncias sofrer medidas que vão até a internação em estabelecimento para este fim. Os atos infracionais praticados por adolescentes são análogos aos crimes previstos na lei penal. Por exemplo, injúria e lesões corporais são crimes se praticados por pessoas maiores de 18 anos. Se praticados por adolescentes, são atos infracionais. Em se tratando de bullying, apesar de não haver previsão legal sobre esta espécie, é bom lembrar que, por se tratar o bullying de atos repetitivos de humilhações (injúria) e ofensas físicas (lesões corporais), o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê:
Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I – tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II – por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
Se as escolas passarem a inserir em suas normas e diretrizes escolares a punição disciplinar quem pratica bullying, esta seria não apenas uma forma de cumprir melhor seu papel de inclusão social e de dever de guarda da integridade dos que estão sob seu manto, mas também de resgatar os conceitos básicos da vida em sociedade, sem necessitar sofrer a intervenção estatal, através do Judiciário. No entanto, esta falta de tato com a questão que envolve o tema pode vir a ser regulamentada: na última terça-feira, (14/06) a Comissão de Educação do Senado aprovou o projeto de lei que responsabiliza as escolas, públicas ou privadas, por episódios de bullying. A proposta, de autoria do senador Gim Argello (PTB-DF), foi aprovada em caráter terminativo e seguirá agora para apreciação da Câmara dos Deputados. Caso também seja aprovada na Câmara, a matéria deverá ser incluída na Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Minha filha, hoje, está com 8 anos, é ótima aluna e não se recorda mais das mordidas na cara. Mas eu ainda me pergunto: tivesse eu tapado o sol com a peneira, ela estaria hoje entre os melhores alunos?
Fonte: Autor Antonio Sammartino - Advogado OAB-SC 17896
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