Por Alda Sousa*
1. Introdução
A violência manifesta no ambiente escolar através de práticas como o “bullying” vem, paulatinamente, chamando atenção de diferentes setores da sociedade brasileira (governos, meios de comunicação, organizações não-governamentais, escolas, universidades), seja visando à identificação deste fenômeno, seja demandando intervenções para resolução do problema.
Sabe-se que a violência entre jovens, em sua forma física ou simbólica, não é um problema novo no cotidiano da escola. Esta muitas vezes compreendida como lugar de exclusão de grupos minoritários e de reprodução de situações de violência e discriminação (DEBARBIEUX, 2002, DUBET, 2004). Entretanto, por seu caráter multifacetado a violência escolar vem assumindo, contemporaneamente, novas dimensões e significados a partir de diferentes contextos sócio- culturais.
Para Fante (2005) a violência escolar nas últimas décadas adquiriu dimensão crescente em todas as sociedades, questão preocupante é a incidência de sua manifestação em praticamente todos os níveis de ensino. Neste sentido, uma forma sutil de violência que vem ganhando maior visibilidade no espaço escolar é o chamado bullying.
De um ponto de vista sócio-antropológico o fenômeno bullying emerge de ações discriminatórias por vezes dissimulada, tratando-se de um tipo de exclusão social capaz de oprimir, intimidar e machucar gradativamente (GUARESCHI, et al., 2008). Começa frequentemente pela não aceitação de uma diferença (FANTE, 2005), estabelecendo-se a partir daí relações desiguais de força ou violência simbólica (BOURDIEU, 2011) entre pares.
Para se ter uma ideia, segundo pesquisa realizada pela FIPE/ MEC/ INEP (2009) ações discriminatórias na escola manifestas através de práticas como o bullying são muitas vezes motivadas pelo fato de pessoas pertencerem a grupos estigmatizados socialmente. As principais vítimas desse tipo de violência, segundo o estudo, são os jovens negros, pobres e homossexuais. Para visualizar o estudo na íntegra, acesse o Portal do MEC através do link: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relatoriofinal.pdf
Este artigo/aula visa suscitar reflexões sobre o problema da violência escolar entre jovens, considerando a relação tênue entre conflito x violência, bem como entre “bullying”, preconceito e práticas discriminatórias direcionadas a grupos sociais específicos no espaço escolar. Como distinguir violência x conflito? Em que medida preconceitos e discriminações (de gênero, classe, étnico-racial, etc) construídos historicamente em nossa sociedade e reproduzidos na escola dão conta de explicar ações violentas entre jovens? Que conexões estabelecer entre “bullying”, preconceitos e práticas discriminatórias entre atores escolares? Como construir uma cultura de direitos humanos e de respeito às diversidades entre professores e jovens/alunos?
2. O bullying escolar como forma de violência simbólica
O estudo do chamado bullying entre jovens no ambiente escolar passou a ter maior ênfase a partir da década de 1970 , notadamente no meio acadêmico de países como Portugal, Espanha, Noruega e Estados Unidos. Diferentemente, no Brasil, ainda são poucas as pesquisas empreendidas para compreensão desse fenômeno no espaço escolar. Destacam-se, nesse sentido, estudos realizados no âmbito da psicologia social, da educação e do direito.
Analisando-o de um ponto de vista das relações de poder, pode-se dizer que o bullying difere de outras formas de violência na medida em que pressupõe uma relação desigual de força, na qual um ou vários indivíduos, reconhecendo-se numa suposta situação de establishment (ELIAS, 2000) lança mão de diferentes mecanismos no intuito de maltratar ou excluir uma possível vítima. Segundo especialistas, são três as principais formas de manifestação do bullying, a saber:
1) Os comportamentos “diretos ou físicos”, tais como agressões, coerção, chantagens e roubos;
2) Os comportamentos “diretos e verbais”, como insultos, apelidos, comentários racistas, homofóbicos ou outros que revelem uma não tolerância às diferenças;
3) Os comportamentos “indiretos”, como boatos, intimidações, exclusões e manipulação da vida social de outrem.
Há ainda o chamado cyberbullying, uma forma mais recente de bullying praticada por meio de tecnologias de comunicação, como computadores e celulares.
Cyberbullying: o que é?
É uma prática que envolve o uso de tecnologias da informação reforçando comportamentos deliberados, repetitivos e hostis praticados por um indivíduo ou grupo com a intenção de prejudicar outrem. Os chamados cyberbullies podem divulgar os dados pessoais das vítimas (como nome, endereço ou o local de trabalho ou de estudo, por exemplo) em sites ou fóruns, ou publicar material em seu nome que o difame ou ridicularize-o. É um tipo de ação que tem se tornado recorrente entre jovens, podendo ser tão prejudicial quanto o bullying “tradicional”. Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Cyberbullying
Neste sentido, os protagonistas envolvidos no fenômeno do bullying, via de regra, desempenham quatro papéis específicos, conforme ressalta Fante (2005), a saber:
• A “vítima típica”, tida como o bode expiatório para o grupo;
• A “vítima provocadora”, ou seja, que estimula reações agressivas entre pares;
• A “vítima agressora”, que reproduz maus-tratos sofridos no espaço escolar;
• O “agressor”, que age sobre os colegas considerados mais frágeis;
• O “expectador”, que presencia as situações de bullying entre o grupo, mas mantém-se neutro.
De um ponto de vista sócio-antropológico o "bullying" pode ser entendido como uma manifestação da violência simbólica (BOURDIEU, 2011) nas relações escolares, na medida em que impõe significações tidas como legítimas, dissimulando relações de força. É por meio desta forma de violência que se percebe o exercício e a difusão de uma superioridade fundada em mitos, símbolos, imagens, mídias e construções sociais que discriminam, humilham e excluem, seja em razão de classe social, geração, gênero, etnia, religião, orientação sexual, etc.
3. Preconceito e discriminação: dois conceitos centrais na compreensão do fenômeno do “bullying” escolar na contemporaneidade.
Pesquisa recente realizada pela FIPE/MEC/INEP (2009) aponta a existência de uma relação intrínseca entre bullying, preconceito e práticas discriminatórias nas escolas públicas brasileiras, manifestando-se, via de regra, em relação a certas minorias sociais. Pessoas consideradas “vítimas” e seu pertencimento a grupos sociais específicos, bem como as explicações de ordem psíquica para os indivíduos considerados agressores, parecem aproximar o bullying, segundo Antunes (2008), de uma forma de preconceito estudada durante a década de 1940, na Escola de Frankfurt, em decorrência do nazismo.
Para Rouanet (apud ANTUNES, 2008) o preconceito é uma energia móvel infinitamente plástica, mobilizável ad libitum por uma estrutura cultural cuja única lei é o esteriótipo. Trata-se, como o próprio termo sugere, de uma ideia preconcebida, diferindo da noção de discriminação na medida em que esta pressupõe um tipo de prática. Nesse sentido, Guareschi e Silva (2008) acrescentam que as discriminações em geral ocorrem mediante uma intolerância à diferença fundada em padrões sociais extremamente fixos, implicando numa agressividade irracional com relação à maneira de ser, ao estilo de vida, as crenças e convicções de indivíduos ou grupos específicos. (GUARESCHI e SILVA, 2008; ROUANET, 2003)
Em documentos normativos como a Convenção da Unesco de 1960, por exemplo, a noção de discriminação é definida como um termo que abrange qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência, seja por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião pública, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, que tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino. (UNESCO, 1960). Nessa direção, o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (2005-2007), elaborado pela ONU/UNESCO, recomenda que o acesso e a participação de diferentes atores no sistema educativo, bem como a promoção de ambientes de aprendizagem inclusivos, que propiciem a igualdade de oportunidades, a diversidade e a não discriminação a segmentos sociais historicamente excluídos, devem ser prioridade na educação básica.
No Brasil, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, de 2007, ao incorporar aspectos dos principais documentos internacionais de direitos humanos, visando não só à construção de uma cultura democrática e cidadã, mas também a consolidação de políticas públicas de equidade social no espaço escolar, aponta, justamente, como um dos princípios norteadores da educação básica a inclusão da temática educação em direitos humanos no currículo, na formação inicial e continuada de professores, nos materiais didáticos e no projeto político pedagógico das escolas. Como parte das ações do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos III, foram homologadas em 2012, as diretrizes nacionais para a educação em direitos humanos, visando dentre outros objetivos, o combate ao bullying no ambiente escolar. (Parecer nº 08 CNE de 29/05/2012).
No Ceará, há uma lei estadual (nº 14.754/2010) que institui o programa de prevenção e combate ao preconceito, intimidação, ameaça, violência física e/ou psicológica originária do ambiente escolar. Já no plano municipal, a lei nº 0129/2011 decreta que as escolas municipais da educação básica de Fortaleza devem incluir em seu projeto político pedagógico medidas de conscientização, prevenção e combate ao bullying com foco na capacitação de professores.
Mas concretamente, como a escola lida com as diferenças, hoje? Até que ponto os diferentes atores escolares são reprodutores de uma ordem social dominante, reforçando preconceitos e discriminações em relação a certas minorias sociais? Quais ações vêm sendo empreendidas no sentido de desconstrução da violência simbólica e da resolução não violenta de conflitos no espaço escolar?
3. 1 O papel da escola na construção de uma cultura de não-violência e a educação em direitos humanos
A escola como instituição capaz de promover uma integração funcional em torno de valores (DUBET, 1994) vem experimentando mudanças profundas na contemporaneidade. Antes tida como espaço de integração e socialização, tornou-se cenário recorrente das mais diferentes formas de violência. (ABRAMOVAY, 2002), seja manifesta na relação professor/aluno, seja na relação entre pares. Para Dayrell (2007) as tensões e os desafios existentes na relação atual da juventude com a escola são expressões de mutações profundas que vêm ocorrendo na sociedade ocidental, afetando diretamente as instituições e os processos de socialização das novas gerações, e interferindo na produção social dos indivíduos.
Apesar desta constatação de crise, não se deve levar a crer que a escola atualmente “não funciona” (DUBET, 1994). Ao contrário, parto da perspectiva de que a escola, como um dos principais espaços de sociabilidade juvenil, mas também como espaço de reprodução de relações de poder desiguais, tem um papel essencial, concordando com Faleiros (2007), na desconstrução da violência simbólica e da cultura de inferiorização de gênero, de raça, de classe social e de geração. Embora não se possa atribuir à escola a responsabilidade de explicar identidades sociais ou de determiná-las, é necessário reconhecer que “suas proposições, suas imposições e proibições fazem sentido, têm ‘efeitos de verdade’, constituem parte significativa das histórias pessoais.” (LOURO apud JUNQUEIRA, 2009). É o que ocorre, por exemplo, com a produção e reprodução da violência simbólica na escola decorrente das relações de gênero , da homofobia e do racismo.
Para Junqueira (2003) a homofobia no espaço escolar exerce um efeito de privação de direitos sobre os jovens na medida em que afeta- lhes o bem estar subjetivo; incide nos padrões das relações sociais entre estudantes e destes com os profissionais da educação; interfere nas expectativas quanto ao sucesso e ao rendimento escolar, além de exercer um poder de intimidação, estigmatização, segregação e isolamento, ocasionando desinteresse pela escola. O mesmo ocorre com a questão do racismo. A recorrência a uma “pedagogia do insulto”, neste caso, um “insulto racial” como mecanismo de silenciamento e dominação simbólica, revela segundo Guimarães (2002), uma dimensão privada nem sempre trabalhada nas ciências sociais, que é a do sofrimento individual como esfera decisiva na criação de subjetividades e na reprodução de jogos sociais.
Em face disso, e concordando com Benevides (2000), a educação em direitos humanos deve basear-se na vivência do valor da igualdade em dignidade e direitos para todos e deve propiciar o desenvolvimento de sentimentos e atitudes de cooperação e solidariedade. Além disso, entendo ainda que é preciso fortalecer nos jovens a capacidade de saber lidar com o conflito, que não é necessariamente sinônimo de violência.
Violência, freqüentemente, é a reação que uma das partes envolvidas num conflito assume quando não pode vencê-lo de outra maneira. Conflitos, diferentemente, podem ser entendidos como disputas em torno de um objeto qualquer (formas de ver o mundo, recursos matérias, regras de conduta, etc), que podem inclusive favorecer a superação de certos tipos de violência.
Neste sentido, Shilling (2008) defende que a construção de relações de poder democráticas e de uma autoridade democrática (por ex. a realização de assembléias escolares) é um caminho possível para a resolução não violenta de conflitos, para o não apagamento do outro. O que passa, certamente, pela propagação de uma cultura política sobre o próprio entendimento de direitos humanos, hoje.
Vamos refletir um pouco?
1- Como você, educador(a) e o jovem estudante têm observado e refletido sobre a violência no espaço escolar?
2- Como a escola pode, efetivamente, contribuir para desconstrução de preconceitos e violências em relação a certas minorias sociais hoje?
3- Qual o papel da Educação em Direitos Humanos nesse processo?
4- Quais ações sugerir para resolução não violenta de conflitos no espaço escolar?
Referências
ABRAMOVAY, Mirian (org.). Escola e violência. Unesco, Brasília, 2002.
BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.
BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean- Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educ. Soc., Campinas, vol.28, n.100-Especial, p.1105-1128, out. 2007. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br Acesso: 16/07/2012.
DEBARBIEUX, Eric. Violência nas escolas: divergências sobre palavras e um desafio político. In: BLAYA, Catherine, DEBARBIEUX, Eric. (org.). Violência nas escolas e políticas públicas. Unesco, Brasília, 2002.
DUBET, François. Sociologia da experiência. Instituto Piaget, Lisboa: 1994.
GUARESCHI, Pedrinho A., SILVA, Michele Reis (coord). Bullying: mais sério do que se imagina. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS,2008.
FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência e educar para paz. 2 ed. Campinas-SP: Verus editora, 2005.
FALEIROS, Vicente de Paula, et al., Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2007. (Coleção Educação para Todos, nº 31)..
FIPE, MEC, INEP. Projeto de estudo sobre ações discriminatórias no ambiente escolar. Disponível em: portal.mec.gov.br/dmdocumentos/relatoriofinal.pdf. Acesso: 17/05/2012.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia na escola: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia na escola. Brasília: UNESCO, MEC/SECADI, 2009. (Coleção Educação para Todos, vol.32).
NORBERT, Elias, SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
UNESCO. Convenção relativa à Luta contra Discriminação no campo do Ensino. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0013/00132/132598por.pdf Acesso:20/05/2012.
*Artigo/aula adaptado para publicação no Portal Ensino Médio em Diálogo.
*Doutoranda em Sociologia pela UFC, pesquisando sobre as representações e práticas de bullying entre atores de duas escolas públicas de Fortaleza-Ce. Integrante do LAJUS/UFC e da equipe do Projeto Ensino Médio EMDiálogo-Ce.
Fonte: em diálogo