Doutor Nazar
Já mudamos nosso filho de escola por três vezes, mas continuamos com o mesmo problema. Ele sofre nas mãos de coleguinhas. São agressões verbais, físicas, intimidações. Ele sempre acaba sendo excluído. Conversamos com professores, coordenadores, pais de amigos, de nada adiantou. As coisas mudam por uma ou duas semanas e logo depois retornam. Os meninos sempre o pegam para Cristo, curtem com a cara dele. Da última vez foi agredido fisicamente, carregando marcas no corpo.
Ele é filho único. Procuramos dar-lhe a melhor educação possível. Foi educado com respeito, carinho e muito amor. Ensinamos a ele a necessidade de respeitar o próximo, a não reagir aos insultos e provocações. Sempre foi muito estudioso, tira sempre as melhores notas na escola. Mas o grande problema é a sua quietude nos relacionamentos. O pai é muito rígido, religioso, não admite erros, é rigoroso ao extremo. Meu filho tornou-se um menino tímido, e chega a esconder as barbaridades que fazem com ele nas escolas. Hoje me vejo como uma mãe assustada, acuada, perdida entre o que o meu marido diz e o que falam os professores. Vejo-me frente a um filho que sofre em silêncio, como se não fosse com ele. Meu marido quer deixar com Deus, cedo ou tarde isso será resolvido. Não sei o que fazer para ajudá-lo. Eles dizem que com o tempo isso vai mudar. O senhor pode me orientar?
Violência nas escolas
Sim, é possível orientá-la. Mas você realmente está aberta a questionamentos e em condições de se deixar orientar por uma visada que não seja opaca ou inocente? Você mesma constatou que a coisa não é tão simples: não basta mudar seu filho de escola, seus problemas caminharão com ele. E o problema não reside somente nos grupos que encarnam em seu filho nas escolas que frequenta. Temos que implicá-lo nesta questão, pois é de se estranhar tamanha repetição de um mesmo fato. É muita coincidência, não é mesmo? O acontecimento em si não é sem a sua participação. Alguma coisa que ele provoca nos outros meninos. Diria mais: algo em seu filho convoca o comportamento agressivo do grupo sobre ele. Veja bem, o grupo, e sua necessidade de violência, já está lá, à espera, esperando por um alvo, um objeto adequado.
O primeiro passo a ser dado é que a família se questione. A família, digamos, está doente, ainda que o sintoma esteja presente no seu filho, na sua necessidade de se vitimar. É preciso, pois, que vocês possam se implicar nesta cena que se repete. Dizer que a culpa está no outro, nos grupos que agridem seu filho – embora isto seja uma verdade – não basta, cairíamos numa inocente interpretação que não leva a lugar algum.
Não devemos aceitar as coisas como simples fatos que acontecem, sem que haja um questionamento: por que justo com o meu filho? Por que sempre esta repetição? Será mesmo que ele provoca esta situação? É lógico, pois nada, mas nada mesmo justifica o agir cruel dos grupos contra alguém. Mas não é disso que se trata. Temos que avançar. O quê, deste menino, faz nascer esta violência para cima dele? Qual é o traço que ele repete e que leva o grupo a tomá-lo como objeto de seu gozo. Este menino atualiza, no social, uma posição de sacrifício, tal qual ele fora colocado no desejo de seus pais. Em todo caso, trata-se de alguma cois que emerge a despeito dele mesmo – é isso o inconsciente -, algo de uma infância em si mesma desencontrada, de um trauma que se estruturou na sua relação com seus pais, e que atualiza no social dos grupos.
Como devemos abordar os disparates que permeiam o dia a dia da vida escolar de crianças e de adolescentes? A convivência nas escolas é realmente sempre uma vida em constante turbulência, plena de comportamentos excessivos. Há algo que excede, escapa, extrapola. Como entender estes rompantes de violência que desde sempre habitam os meandros dos ambientes escolares, fundamentalmente no que diz respeito à formação de grupos que têm como objetivo maltratar alguém exterior a eles? O grupo sempre age sem pensar. Ele é regido por desejos inconscientes e, para se manter, necessita expiar em alguém algo de insuportável nele mesmo. Um gozo mau, vivido como insuportável, deve ser expiado, posto fora. E ele sempre encontra alguém que se encaixa sob medida para suportar o insuportável nele próprio. Porque seu filho se encaixa neste enquadre, eis a questão. O grupo é fraco, covarde, e não suporta diferenças. São, sim, violências gratuitas, insensatas.
Os matizes dos comportamentos agressivos que tramitam no mundo das relações de crianças e adolescentes, o que isso quer dizer? Eles são patológicos? Podemos supor que são transgressivos por ferirem de perto a lei que rege a convivência? Crianças são crianças! Adolescentes são adolescentes. Freud não cessou de afirmar que a criança porta uma agressividade fundamental. Ela traz em sua vida psíquica, originalmente, uma sexualidade polimorfa, perversa, aberrante, cruel. O mundo pulsional, que causa nossa vida de desejos, é uma floresta espinhosa, desconhecida, prenhe de raízes que sustentam comportamentos insensatos. Loucuras, nada mais!
As boas palavras, tanto em casa quanto numa escola, levam a criança e o jovem ao congraçamento de um respeito mútuo, de uma convivência civilizada. É no interior de um ambiente escolar que as violências, próprias à condição humana, encontram suas possibilidades de realização em formas de grupos. Atualizamos, numa vida escolar, todas as nossas fantasias, os nossos dilemas, daquilo que se processou nas relações com nossos pais e irmãos. Ela mostra o frescor de sua cara quando não conseguimos fazer um bom uso das palavras. Somos todos seres filhos e herdeiros de vidas amargas. Quando não falamos, violentamos nossos semelhantes e/ou a nós mesmos.
Os seres humanos, quando agem em grupo, são propensos a injúrias. Não importa a idade, em grupo a violência se torna mais viável em suas artimanhas e objetivos. As histórias se repetem: um grupo toma alguém diferente como objeto de escárnio, simples objeto de prazer, com um objetivo gratuito de humilhar. Uma das maneiras de gozar é gozar da humilhação do outro! Um gozo, arrisco dizer, semelhante àquele proporcionado pela droga cocaína, por exemplo. O gozo de humilhar e o desejo de se fazer humilhar. O grupo se afirma na fragilidade e no medo da vítima, com isso, encobre a sua. O grupo nega a diferença sob as vestes encobridora de uma homossexualidade. O grupo é sempre homo. A dinâmica deste processo cruel e hediondo, faz parte das estruturas que regem os laços sociais.
É simples demais dizer: é um caso clássico de buyilling, é culpa dos grupos que o tamam como pele, é a escola que deve cuidar, se responsabilizar. Vamos colocar leis, estabelecer sanções para coibir a violência nas escolas, ou seja, colocar mais e mais limites? É lógico, todos devem se mobilizar e não permitir a formação de grupos. Vou me explicar melhor, mas o passo inicial é que seu filho inicie um tratamento analítico, único caminho a seguir. Seu filho necessita de tratamento. Ele deve descobrir numa análise uma nova posição subjetiva frente ao outro – aqui, o pai doente que vige sob as insígnias de um bom pai, trabalhador, religioso, que não permitiu que este menino vivesse sua infância conturbada, ou seja, uma infância feliz. Este menino necessita de tratamento psicanalítico, entende isto? Bom, pelo menos ele.
O argumento de que são os outros que o maltratam, embora real, não justifica tamanha repetição. Por que este menino sofre tanto nas mãos de outros? Mesmo que não o saiba, ele gosta de sofrer? Aí reside o perigo!
Neste momento, há algo urgente: o que interessa é o futuro dele. É preciso ajudá-lo a restaurar a sua sobrevivência emocional, levá-lo a se desfazer dos nós psíquicos que o impedem de se relacionar de maneira mais saudável com outras crianças. Ele precisa aprender a se proteger, reclamar, lutar pelo seu direito de sujeito na vida social. Ele precisa aprender a fazer barulho. De outro modo, como tirá-lo desta prisão imaginária onde ele se encontra confortavelmente trancafiado? Qual a saída mais autêntica para esta situação patológica, pois esta dificuldade pode se tornar alguma coisa crônica, difícil de ser solucionada, entende?
O problema maior, o enorme perigo, é que seu filho possa vir a se acostumar a cair sempre para uma suposta posição de vítima, a sofrer passivamente, em silêncio, frente à vida. Isso é grave porque nada fica de graça, ele pode estruturar uma patologia difícil de ser tratada. Ele está tomando gosto nesta posição, nesta cena que se repete. Mesmo quando muda de escola, carrega algo que nem mesmo ele sabe e atualiza no grupo pedindo para ser agredido. Ele goza numa suposta posição de superioridade frente ao grupo. Trata-se, escancaradamente, de uma repetição: ah! O outro é mau e faz maldades comigo, o grupo é o algoz que me chicoteia! Mas qual é o meu gozo nesta cena que se repete? Por que razão não consigo reagir e dar outro rumo às minhas relações? Vejo-me sendo visto, reconhecido e amado pelos meus pais que me querem nesta situação de menino bonzinho, quieto, que tudo pode sofrer? Não, isto não está certo. Não é justo, você deve levar seu filho a se ajudar, sair desta comodidade doentia.
O seu relato descreve um caso clássico de buyilling: seu filho é vítima de comportamentos violentos na escola. Nada justifica a ação desrespeitosa, a agressividade, a violência dos grupos para cima de seu filho, nada mesmo! Mas se os grupos são insanos, cruéis, não pensam nem sabem o que fazem, por que este menino é pele, é tomado como objeto chacota de outras criancas, digo, dos grupos? Ele não estaria atualizando, nesta cena, uma posição tão passiva quanto odienta da sua relação com o pai? Veja, isto não se dá sem atua paticipação omissa enquanto mãe. Este menino certamente estruturou uma arrogância odienta frente a este pai doente, que não está aí senão como mero servidor das normas religiosas e institucionais. Por que digo isto se, aparentemente, bastaria que se eliminasse os efeitos de grupo que o agride e pronto, tudo estaria resolvido? Não é assim que estamos acostumados a ver as coisas? Mas não é desta maneira que analisamos as questões subjetivas. Temos que perguntar qual é a participação deste seu filho nesta cena de agressão. Qual a sua parte? Ora, mas ele é vítima, são os outros que o agridem, ele não tem nada a ver com isto! Será?
Vou realizar, por outra via, uma análise deste tipo de acontecimento com suas consequentes exclusões. Desculpe-me a insistência neste ponto. O problema não é somente os outros que encarnam nele. Decisivamente, trata-se do fato de ele se deixar, se fazer encarnar pelo grupo de meninos. Difícil de aceitar, mas ele se oferece numa posição de sacrifício.
Vamos pensar juntos o que você nos apresenta como questão. Qual é o problema de seu filho? Eu nem diria um sofrimento, pois parece que ele mesmo não sofre, ou ao menos não tem consciência do mesmo. Temos a cena em si: uma criança é molestada por grupos de outras crianças, algo que se passa na escola, fora de seu lar. Isto nos espanta, pois trata-se de um ponto por demais delicado e grave: este menino sofre em silêncio, age como se não fosse com ele, parece estar muito mais aprisionado à uma disciplina que lhe tem sido imposta arduamente ao longo de sua vida do que em relação aos fatos à sua volta. O que nos preocupa é a sua (a dele) arrogância diante da violência que lhe é dirigida, que parace gozar nesta posição diante do outro. Isso é patológico, deve ser tratado.
Por favor, entenda o que será dito, dê um crédito, porque esta questão não é simples como tem sido demonstrado pela mídia. O que você e seu marido têm que fazer é se perguntarem sobre as razões que levam seu filho a cair nesta posição. Partimos do seguinte: questão delicada, mas não existe lobo nem cordeiro, pelo menos separadamente. O grupo que pratica este ato selvagem com seu filho, ele mesmo não o faz com ele por acaso. Qual a razão? Esta metáfora ilustra o quanto gozamos, ao mesmo tempo, tanto como lobo quanto como cordeiro. Não há dentro nem fora, é assim a vida humana, nossa cabeça é uma loucura divina!
Sim, pode-se dizer que seu filho é vítima de uma ação agressiva e inconsequente de um grupo. Injustiçado, ele é tomado como objeto de desprezo pelos coleguinhas que se juntam para depreciá-lo. Mas o problema está na particularidade dos vínculos: ele sofre passivamente por ser portador de algum traço, uma marca, uma diferença em relação aos outros, e por isso é escolhido a dedo.
O bullying sempre existiu nas relações entre crianças e adolescentes, mas agora está na moda e tem se tornado motivo de preocupação por parte de pais, professores e autoridades. É isso aí!
Bullying é um termo em inglês utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo (bully - «tiranete» ou «valentão») ou grupo de indivíduos com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo (ou grupo de indivíduos) incapaz(es) de se defender. Também existem as vítimas/agressoras, ou autores/alvos, que em determinados momentos cometem agressões, porém também são vítimas de bullying pela turma (Wikipedia).
Fonte: Século Diário - Espírito Santo