Insultos subtis e exclusões. Assim é o drama de 10% dos atletas no desporto jovem. O balneário é o local preferido para as agressões. O Observador falou com os autores do maior estudo sobre o tema.
— Como é que achas que ele fica, esse teu colega, quando gozas com ele? O que é que ele sente?
— Fica com uma cara de furioso, não sei o que se passa com ele; não sei o que é que se passa no cérebro dele, que começa a ficar furioso ou então cala-se e começa a dizer: “Parem, pá!!” (risos)
— Sentes-te mal quando lhe fazes isso?
— Eu não! Porque ele sempre foi assim (indigna-se)…
Não vale a pena ignorar o elefante que se move sorrateiramente na sala a transbordar de loiças: o bullying existe. Existe nas escolas e no desporto jovem, em muitos clubes federados, em várias modalidades e sob muitas formas. Existem mil e uma maneiras de agressão, seja diretamente ou através da exclusão social, seja individual ou em dinâmica de grupo. Motivos? Há muitos, nomeadamente censurar a baixa performance do outro, o corpo e a personalidade. Quem não responde é fraco e torna-se ainda mais castigado. Quem responde irrita-se, por isso está picado e é para continuar…
O abandono da modalidade ou clube é uma opção. Ficar também, claro, sob a forma de resiliência e teste à natureza do carácter. Os pais são pouco chamados a ajudar (pelos filhos), mas quando o fazem a coisa não costuma correr bem. É que estão mais focados no desempenho desportivo do que nas vulnerabilidades dos miúdos. Os abusos acontecem normalmente longe dos observadores (treinadores ou adultos dos clubes), nos balneários.
“Marcou-me o que sentiam, a aflição — ‘eu não percebo porque é que eles implicam comigo’. Alguns quase começaram a chorar na entrevista, sentem-se completamente perdidos”
Miguel Nery
O Observador teve acesso à tese de doutoramento de Miguel Nery (“Bullying no contexto da formação desportiva em Portugal”), um psicólogo clínico que, durante cerca de cinco anos, se debruçou sobre este tema e chegou a conclusões alarmantes — é o maior estudo sobre a temática em Portugal. O Observador entrevistou o autor da tese e o orientador, Carlos Neto, professor e investigador da Faculdade de Motricidade Humana.
Os participantes são atletas dos escalões de formação (juvenis, juniores, cadetes, sub-16 e sub-18, dependendo da modalidade), do sexo masculino, praticantes de 9 modalidades divididas em 3 grupos: individuais (ginástica, atletismo, natação), colectivas (futebol, rugby, andebol, voleibol) e de combate (judo, luta). Os atletas estão envolvidos em actividades de competição e estão filiados em clubes federados, distribuídos por todo o território de Portugal Continental
A tese está dividida em três partes: uma que revela os números globais, a segunda com entrevistas a intervenientes — agressores, vítimas e observadores — e, finalmente, a terceira fase, na qual são ouvidos atletas de alta competição, de cada uma das modalidades abordadas no estudo. O arranque deste texto trata-se de uma das 127 entrevistas de Miguel Nery a personagens ligadas ao fenómeno — neste caso, é um agressor.
O estudo indica que 10% da amostra (de um total de 1458 atletas) referiu já ter sido vítima de bullying, enquanto 11,25% admitiu que participou na qualidade de agressor. Se os números impressionam, a segunda fase, a das entrevistas aos intervenientes, permite uma viagem às entranhas dessa realidade. A leveza, a banalidade das palavras, a suavidade da insinuação e, por vezes, a incompreensão da situação, ajudam a explicar a razão pela qual é tão difícil por vezes identificar o fenómeno, sinalizar situações e ajudar ou proteger as crianças ou adolescentes. “Marcou-me o que sentiam, a aflição — ‘eu não percebo porque é que eles implicam comigo’. Alguns quase começaram a chorar na entrevista, sentem-se completamente perdidos”, diz Nery.
O que é o bullying e onde acontece
Comecemos pelo princípio para afastar equívocos: o que é bullying? “É uma forma particular de violência no desporto”, explica Carlos Neto. “Obullying refere-se essencialmente a eventos que acontecem entre pares de forma repetida e ao longo do tempo. É preciso distinguir o que é um ato de violência isolado e um ato de prepotência que inferioriza sujeitos, colegas, de forma particular, seja através de bullying físico, social, racista, simbólico ou até cyberbullying.”
Em 2014, um estudo da EPIS (Empresários pela Inclusão Social), que ouviu 1963 alunos entre os 12 e 15 anos, concluiu que mais de 60% deles confirmava casos de
bullying nas suas escolas,
contou o Público. No desporto jovem, embora os valores impressionem autor e coordenador da tese, os números são muito mais baixos. E é fácil de explicar porquê: os jovens não podem abandonar ou mudar de escola quando entendem. Há muito mais liberdade nas escolas e espaços para ocorrerem tais situações. No desporto há muito mais controlo de adultos, nomeadamente de um treinador, e o espaço de ação é mais limitado, razão pela qual a maioria das agressões ocorrem nos balneários, longe dos olhares indiscretos dos observadores.
"Quando falamos com treinadores percebe-se que isso está muito enraizado: há treinadores que consideram natural aquilo de ‘os fracos vão ficando pelo caminho'”
Miguel Nery
Mas há mais explicações: “A seleção natural”, diz, indignado, Carlos Neto. “A prática nos clubes é selectiva, é uma condição, é natural, mas não devia ser.” Ou seja, não é para todos. Miguel Nery corrobora: “É muito comum. Quando falamos com treinadores percebe-se que isso está muito enraizado: há treinadores que consideram natural aquilo de ‘os fracos vão ficando pelo caminho.'”
“Por exemplo, numa viagem que nós fizemos até X, um rapaz da nossa equipa — ele é um bocado diferente mas tem imensa piada — começou a contar piadas, estávamos a contar piadas, e às tantas o pessoal já não se estava a rir das piadas, estava-se a rir dele e ele estava-se a sentir mesmo de facto gozado e estava-se a sentir posto de parte. Pronto, esse é um desses episódios” — atleta de râguebi
Essa realidade promove o abandono. “Há muitos miúdos, principalmente no início, que desistem, porque há seleção feita em parte pelos colegas e pelos treinadores (seleção dos melhores)”, explica Nery. “É uma seleção artificial, fazem-no muito. E depois entra a vertente dos pares, da relação com os colegas. Não encaixando num determinado modelo, muitas vezes começam a criar-se uma série de dificuldades e os miúdos acabam por desistir.”
E como se expressa o bullying normalmente? “Uma das coisas que esta tese veio demonstrar é que acontece no local onde há menos controlo. O balneário é exatamente o local onde não existe um verdadeiro controlo de todas as variáveis do processo”, conta Carlos Neto. “Claro que também acontece no treino, na competição e fora do clube, mas principalmente no balneário. Às vezes, começa por pequenas palavras, pequenos insultos, coisas que parecem insignificantes, que não têm uma vinculação muito agressiva, mas que, para certos jovens, tem e deixa marca. Mesmo em relação à forma do corpo, à sua proporção, à aparência, à vestimenta do corpo. Há um conjunto de sinais que o jovem pode apresentar que pode ser motivo de chacota e gozo, infligindo depois o mau trato. São essas coisas subtis, essa subtileza com que o jovem vive no desporto, que muitas vezes se tornam graves porque são repetidas e vão marcando com o tempo.”
Segundo o autor da tese, há muito pouco contacto físico nestas situações em que baseou o estudo, mas há outros sinais muito mais discretos e igualmente nocivos. “No futebol, por exemplo, não há esse contacto físico direto, mas muitas vezes identifica-se o mais fraco. Depois, há situações em que se entra à bola com muito mais força nesse colega. Não entrariam assim a um líder do grupo ou a alguém tido como mais reativo. Ou seja, não terá tanto a ver com o jogar pior, mas sim com o facto de aquele não responder”, diz Miguel Nery.
“Há outra coisa: o [não] passar a bola. Nem é só no futebol. Vão sendo excluídos. A principal forma de bullying é verbal, pelas bocas, depois é social. Não passam a bola e isso até se nota nos jogos. Um treinador chegou a dizer-me que uma vez meteu um miúdo durante um jogo e a bola deixou de chegar àquela ponta. Nos treinos nota-se muito. No balneário falam entre eles e não falam com aquele, vão começando a encostá-lo a um canto. Muitas vezes leva ao abandono, ou então vão ficando e nem eles sabem bem explicar porquê.”
"Vão sendo excluídos. A principal forma de bullying é verbal, pelas bocas, depois é social. Não passam a bola e isso até se nota nos jogos. Um treinador chegou a dizer-me que uma vez meteu um miúdo durante um jogo e a bola deixou de chegar àquela ponta"
Miguel Nery
“O foco do treinador e dos pais está centrado naperformance desportiva, e não na vulnerabilidade do próprio praticante”
Essa permanência na modalidade ou no clube, por vezes, deve-se à ação dos pais. “Fazem pressão para que eles fiquem. Os miúdos têm aquela ideia de que vão superar aquilo. Mas quando mudam de clube ou modalidade (normalmente acontece no futebol), há muito aquele sentimento de ‘agora é que estou bem'”, explica Nery.
Carlos Neto acrescenta: “Uma das questões que se coloca aqui é o foco do treinador e dos pais estar centrado na performance desportiva, e não na vulnerabilidade do próprio praticante. Há crianças e jovens a praticar desporto nos clubes que são eventualmente mais sensíveis que outros, que têm mais resiliência que outros, que têm mais talento que outros. Muitas vezes, não se consegue ter uma perceção justa e clara de até onde vai essa vulnerabilidade e o sofrimento dos jovens. Esse silêncio, muitas vezes, é prolongado por comportamentos anti-sociais dos pais, que vão provocando mossa atrás de mossa, com mais ou menos repercussões na prestação desportiva do atleta.”
Com quem, então, desabafam os atletas? Dos casos tratados por este estudo, 49,1% fica em silêncio, enquanto 26,7% recorre aos pares; 13,8% opta pela comunicação múltipla (pais e colegas); 8,6% recorre à família e 1,7% a adultos do clube (excluindo o treinador). “Noventa ponto três por cento não procura a família”, salienta Carlos Neto.
Atleta de natação:
— Já presenciei algumas situações, tanto verbais como físicas, no balneário.
— Porquê no balneário? Porque é que achas?
— Porque só lá estão os atletas, não há pais, não há treinadores.
— É uma zona menos vigiada…
— Exacto.
“Falam menos com o treinador, mas quando falam o resultado geralmente é positivo. Com os pares, muitas vezes, funciona bem, e com o treinador também. São as fontes mais importantes. A maior parte dos observadores não gosta dos episódios de bullying, mas há muitos que não fazem nada. Há uns que defendem e uma minoria que se junta ao agressor. A maior parte fica paralisada, neutra”, diz Nery. “Se o bullying em geral for condenado entre pares — e um dos motivos que está subjacente ao mesmo é o ganhar estatuto social –, espera-se que diminua. Deixaria de ser aceite.”
E sustenta: “Sabemos que há agregados familiares com comportamentos interessantes e com apoio positivo, mas há outros que têm um comportamento negativo e prejudicial à carreira desportiva do próprio filho. O desporto é um fenómeno social de grande envergadura, há grandes expectativas que se criam. Por isso, este tipo de comportamentos anti-sociais são colocados em segundo plano, porque a perceção que mais interessa é a prestação desportiva e não o sofrimento. Exige-se que no sistema desportivo existam mecanismos de proteção ao atleta. Isto é fundamental.”
“Os agressores são muito mais ativos, retaliam, são mais respondões, são mais ativos até fisicamente. Normalmente têm uma performance desportiva melhor”
“Existe quase uma cultura de que não pode haver meninos totós a fazer desporto. Têm de ser suficientemente resistentes a provocações, a pequenas intervenções anti-sociais. Como se o desporto fosse para valentes”, explica Neto. “Até os treinadores”, adiciona Miguel Nery, “a corrigir os atletas dizem coisas como ‘não sejas maricas'”.
O problema está, dizem, no estereótipo associado ao desporto, o tal do vigor físico, da resistência à adversidade e palavras — “essa questão do gordinho, do maricas, isso é comum”, reconhece Neto. “Não podemos comparar isto com o desporto de há 40 anos. Hoje os jovens têm outra cultura, outras dificuldades, outras vulnerabilidades, outra sensibilidade. A sociedade mudou muito nesse aspeto.” Nery gostaria de ver combatida “esta a dureza no desporto”.
“Muitas vezes os agressores são os líderes do grupo, exactamente por esse estatuto; acho que está muito ligado aos resultados desportivos que têm. São os líderes, e muitas vezes quase que os outros os admiram, seguem-nos e aquilo dá-lhes um bocado de estatuto para gozarem com os mais novos sem serem chamados à atenção ou postos de parte” — atleta de atletismo
Nem todos os miúdos, diz Nery, se apercebem do que fazem. “Há uns que têm consciência mais tarde. Dizem: ‘eu na altura gozei, hoje olho para trás e penso coitado do miúdo'”. A justificação para o que acontece é uma espécie de “porque sim”, porque o grupo assim o impõe, como se de uma ventania imparável se tratasse. Muitas vezes, trata-se pura e simplesmente de chegar mais alto na hierarquia do grupo. O estatuto é importante. “Há outros que acham normal, dizem que de alguma maneira o outro merece.”
“Existe uma cultura de silêncio face aobullying no desporto, uma vez que a mentalidade de dureza faz com que o pedido de ajuda seja visto como um sinal de fraqueza”, explica Neto. Miguel Nery dá uma achega: “Jogar bem é um fator protetor. Os miúdos contam que às vezes entra um novo ‘armado em mandão’ e que não gostam muito dele, mas ‘joga bem’, por isso tem estatuto. O problema é que se faz uma imagem do atleta ideal: aquele que confronta os outros, ouve as bocas e responde, joga bem, tem uma postura ativa. Vai tudo no seguimento da ideia muito masculina e machista na qual o desporto está baseado ainda.” Mais: “Depois é tudo nesse sentido: o gordo; é gordo, não sabe fazer desporto; é desajeitado, tem baixaperformance. Tudo é visto como divergente ao modelo aceite. Há também o mais passivo, que é visto como aquele que não responde e que por isso dá um sinal de fraqueza.”
"As vítimas, muitas vezes, são miúdos que ou não respondem ou são demasiado reativos. Ou então são alguém que vão levando por esse tipo de coisa: o excesso de peso, o serem desajeitados…"
Miguel Nery
É possível traçar os perfis de vítimas e agressores? É, embora Nery se sinta obrigado a tocar neste assunto com pinças, pois nada é estanque e definitivo. “Os agressores são muito mais ativos, retaliam, são maisrespondões, são mais ativos até fisicamente. Normalmente têm umaperformance desportiva melhor, e estão muito mais próximos da ideia do desportista ideal, até do corpo em si. As vítimas, muitas vezes, são miúdos que ou não respondem ou são demasiado reativos. Ou então são alguém que vai levando por esse tipo de coisa: excesso de peso, o serem desajeitados…”
A tese de Miguel Nery aborda modalidades coletivas, individuais e de combate. Há diferenças na natureza dos abusos? “O estudo quantitativo diz que não há diferenças significativas. O bullying está presente em todos, é importante que se perceba. Mas quando vamos falar com atletas e treinadores, percebe-se que as modalidades individuais e de combate têm, muitas vezes, um ambiente mais controlado”, explica o autor da tese. “É curioso: nas modalidades onde há mais contacto físico, como judo e a luta, normalmente é onde há mais respeito e fair play”,complementa Carlos Neto.
Resumindo: o bullying é transversal a todos os desportos, seja de natureza coletiva ou individual. Tem muitas vezes a ver com a pressão do grupo, com a afirmação de um indivíduo perante pares — os abusos são cometidos na sua maioria nos balneários, longe dos olhares indiscretos dos observadores. Os treinadores e colegas são fundamentais na resolução dos problemas, enquanto os pais, que raramente são chamados a intervir, normalmente complicam as coisas. Porquê? Estão mais focados na cultura do sucesso, em detrimento da formação ou vulnerabilidade do filho. Existe uma seleção natural (e artificial, como diz Nery), o que significa que o desporto jovem não é para todos. Mostrar-se vulnerável ou dar abertura sobre um cenário infeliz é, muitas vezes, entendido como um sinal de fraqueza. Noutros muitos casos são os pais que insistem na permanência do filho na modalidade ou clube, pois a resiliência e resistência são um sinal de virilidade, algo muito digno de um campeão. Resta perguntar: o que fazer?
“No caso específico do judo, já vi, por exemplo, atletas assim mais fortes, a deitarem abaixo atletas que sejam mais fracos ou que tenham menos habilidade e a gozarem com eles, coisas assim” — atleta de judo
“O desporto está em grande mudança em relação às bases históricas e antropológicas. E por outro lado, as características de mudança têm a ver com essa formação para aproveitamento económico e financeiro”, defende Neto. “Este é um problema sério. E provavelmente está também a provocar a ideia de que o desporto não é um direito para todos, estando assim a ser massacrado no sentido de ser só para uns, para os que têm jeito e talento. Muitas vezes esquecemos que se tem de discutir o próprio modelo de formação desportiva. Às vezes o talento aparece mais tarde…”
Num tom de voz mais exaltado, apaixonado, Carlos Neto repete-se e garante que terá de haver reformas: “Tem de haver uma grande formação de reciclagem dos treinadores, assim como formação parental.” Para o professor e investigador da FMH, a solução passará também pela reorganização das federações, associações desportivas e desporto escolar. Simplificando: uma redefinição de linhas políticas para o desporto de formação.
“As crianças e jovens não podem ser vítimas de um sistema desportivo que não está estruturado para os proteger. O treino, os momentos de desprazer, o sofrimento, que é estruturante, fazem parte. O que não se pode é ser machucado na sua personalidade, integridade moral e ética. Isto é que está aqui em causa, essa violência entre pares, a que chamamos bullying e que tem de ser erradicada!”