A propósito de uma cena de bullying na Figueira da Foz, ocorrida há um ano mas que só agora veio a público - após o aparecimento de um vídeo nas redes sociais -, as televisões voltaram a mostrar casos de bullying filmados em Portugal e lá fora. As imagens são aterradoras. Elas interpelam-nos sobre a bondade da natureza humana.
Se eu amanhã vir um indivíduo a assassinar outro e tiver o sangue frio de filmar o crime com o meu telemóvel, o juiz não aceitará esse vídeo como meio de prova?
É certo que não podemos tomar a árvore pela floresta. Mas ao vermos vários jovens a baterem noutro, repetidamente, brutalmente, sob o olhar divertido e os incentivos de outros jovens que gozam o horrível espectáculo, não podemos deixar de nos interrogar: o ser humano é bom? Os jovens são naturalmente bons?
Como é possível alguém assistir sem se escandalizar, sem procurar intervir, ao espancamento - e à horrível humilhação - de um jovem (quase ainda criança) que não dispõe de quaisquer meios de defesa e apenas procura timidamente proteger as partes mais sensíveis?
Num caso destes, há três níveis de responsabilidade: a de quem espanca, a dos que assistem passivamente e a dos que se divertem com a violência ou a incentivam.
Da primeira nem vale a pena falar. Quanto à segunda, também é criminosa. Mas o que dizer de quem se diverte a ver um miúdo a ser espancado brutalmente? O aplauso, o escárnio, o ar divertido daqueles monstrozinhos, tudo aquilo é assustador.
Ao mesmo tempo que estas imagens ocupavam largo espaço nos telejornais, vinha a público uma notícia relatando um crime medonho: o assassínio de um rapaz de 14 anos por outro de 17, aparentemente por motivos fúteis. Soube-se depois que este jovem criminoso ficou órfão de pai aos 10 anos, dá-se mal com a mãe e tem vivido praticamente toda a vida em instituições de recuperação de menores.
E isto remete-nos directamente para uma questão incómoda: estes jovens delinquentes são simultaneamente agressores e vítimas. Muitos deles são produto de famílias desestruturadas, de pais separados, alcoólicos ou drogados - que tiveram as infâncias destruídas. A sociedade foi cruel para com eles, e eles descarregam agora o seu ódio, a sua revolta sobre outros seres humanos. São como animais feridos.
Assim, custa pensar na sua punição severa. Mas haverá outro caminho? Será possível perdoar a violência? Se o fizéssemos, entraríamos num caminho de impunidade em que os males da sociedade serviriam de justificação para tudo e para todos.
Outra reflexão sobre o bullying tem a ver com as novas tecnologias e as redes sociais.
As cenas que vieram a público foram filmadas com telemóveis e divulgadas depois pela internet.
É preciso dizer que a internet introduziu uma revolução comparável à descoberta da imprensa. Até há poucos anos, o acesso de alguém ao espaço público fazia-se necessariamente através de intermediários. Ninguém podia aceder directamente ao espaço público. A única forma de o fazer era através da rádio, da TV ou dos jornais. Mas com a internet isso acabou. Qualquer indivíduo pode ter a sua página pessoal ou mesmo o seu site, e contactar directamente com milhares ou milhões de pessoas, sem precisar da intermediação de ninguém.
O caso de bullying na Figueira da Foz ficaria no segredo se o vídeo não tivesse sido colocado numa rede social. A prova disso é que, embora tenha acontecido há um ano, ninguém sabia da sua ocorrência.
Para a divulgação generalizada do que aconteceu, contribuiu depois, poderosamente, a TV. E por isso há quem critique as estações televisivas por explorarem demasiado estes casos e repetirem insistentemente este tipo de imagens. Mas essa é uma batalha perdida. É verdade que a divulgação de episódios escabrosos pode estimular a sua imitação. Sabe-se, por exemplo, que a notícia de um suicídio mediático na ponte sobre o Tejo arrasta nos tempos seguintes novos suicídios. E o mesmo se passa com os fogos florestais: a divulgação de imagens de incêndios estimula os incendiários.
Para não falar do que se passou no Marquês de Pombal na celebração do título do Benfica - em que um grupo de jovens atacou a Polícia imitando o comportamento dos 'indignados'.
Mas não é possível pedir aos media que não noticiem o que se passa ou não divulguem as imagens. O papel dos media é esse mesmo: divulgar aquilo que é notícia, aquilo que foge à normalidade. Pode pedir-se aos media bom senso, equilíbrio, ausência de sensacionalismo - mas não se lhes pode pedir que não divulguem imagens chocantes (como as dos vídeos de violência juvenil) ou não tenham notícias de crimes.
E isto remete-nos, ainda, para outra reflexão. Um conceituado constitucionalista, Costa Andrade, afirmava recentemente a um meio de comunicação que os vídeos sobre bullying podiam não ser aceites como meio de prova - visto que, de acordo com a lei, teria de haver o consentimento de todos os intervenientes para as cenas poderem ser filmadas.
Ora, aqui, entramos no domínio do surreal. Percebe-se o alcance da lei: não incentivar as pessoas a filmarem-se umas às outras, tentando provar acusações através de meios audiovisuais. Isso é compreensível. Mas se fosse levado à risca, criar-se-ia um abismo entre a lei e o senso comum.
Alguém entenderia que um vídeo mostrando claramente agressões de um grupo de jovens a uma vítima indefesa não pudesse servir como prova? E faz sentido, num caso destes, perguntar aos presentes se se deixam gravar? Se eu amanhã vir um indivíduo a assassinar outro, e tiver o sangue frio de filmar o crime com o meu telemóvel, o juiz não aceitará esse vídeo como meio de prova? E o crime acabará sem castigo, apesar de existir um suporte material mostrando sem margem para dúvidas a sua autoria? O criminoso será considerado inocente e sairá em liberdade?
Percebe-se que a lei tenha de dar garantias de defesa aos réus - e o formalismo das leis, que as pessoas muitas vezes não percebem, também tem esse objectivo. Mas o excesso de garantias pode ter o efeito contrário: criar na sociedade uma ideia de impunidade, criar a ideia de que pode haver crime sem castigo.
Todos temos pena dos jovens vítimas de problemas familiares - órfãos, filhos de pais separados, alvos ou testemunhas de violência doméstica, etc. - e que caem na marginalidade. Mas não podemos aceitar isso como desculpa. Não podemos ignorar os crimes que praticam. Um destes dias, em conversa com um pequeno empreiteiro que há muitos anos faz trabalhos para mim e tem dois filhos na prisão, eu dizia-lhe:
- Provavelmente, os amigos e os ambientes que frequentavam não ajudaram. Levaram-nos por maus caminhos…
Resposta do pai:
- Eu nasci no Bairro da Serafina, fui criado na rua e nunca fiz mal a ninguém.
Touché!
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