O cyberbullying é um desafio muito mais assustador do que o bullyingpropriamente dito: a amplificação da humilhação atinge o agredido de um modo muito mais profundo do que as agressões físicas.
Dá-me ideia que, em relação ao cyberbullying, há muita gente com dificuldade em perceber a parte do “cyber”. Só mesmo essa ignorância sobre redes sociais, e a forma como elas amplificam um vídeo como o do bullyingda Figueira da Foz, pode justificar que muitas dezenas de milhares de pessoas tenham decidido partilhar aquelas imagens com as caras dos miúdos — e muito em particular a da vítima — a descoberto. A partilha daquele rosto é parte integrante do cyberbullying, e cada pessoa que ajudou a espalhar o vídeo antes de os rostos serem pixelizados, por muito que estivesse indignada e desejosa de justiça, o que fez foi dar uma chapada cibernética na cara do agredido.
Convém que a indignação não nos emparveça e que a vontade de exibirmos ao mundo a nossa self-righteousness não prejudique inocentes. Se alguém se desse ao trabalho de pensar durante cinco segundos na vítima deste caso, não demoraria a chegar à conclusão de que muito pior do que as lambadas que apanhou durante 13 minutos foi esta projecção descontrolada da agressão para um auditório nacional, aumentando exponencialmente a sua vergonha e impedindo-o de andar na rua usufruindo do anonimato a que tem direito. A agressão ocorreu há quase um ano, e nenhum de nós faz a menor ideia se o miúdo tinha ou não ultrapassado aquilo. Mas isto, sabemos que não vai ultrapassar: uma avalanche pública de indignação capaz de lhe dar cabo da vida durante muito tempo.
Entretanto, a revista Nova Gente garante ter descoberto o responsável pela publicação do vídeo, que afirmou que as imagens foram encontradas num cartão de telemóvel caído na casa de banho de um bar da Figueira da Foz. Após meditar duas ou três semanas sobre o que fazer, o detentor do vídeo decidiu que “o melhor seria publicar numa rede social”. “Não para humilhar a criança”, disse, “mas para a ajudar a ter força e mostrar que ela seria mais forte do que quem a agredia”. Eh pá, obrigadinho. Cá está a santimónia em todo o seu esplendor: em vez de entregar o caso à polícia ou — seria o mínimo— de se preocupar em editar as imagens para que as caras não fossem visíveis, nada como promover o vídeo no YouTube e no Facebook, para que o mundo inteiro, no sempre colorido tribunal das redes sociais, tenha oportunidade de mostrar a sua raiva contra os autores das agressões e destruir o dia-a-dia do agredido enquanto dele se vai apiedando. Os Deolinda têm uma famosa canção que diz “o teu bem faz-me tão mal”, e agora temos o avesso disso — o teu mal faz-me tão bem.
É claro que quem sofre bullying não pode ficar encerrado na dinâmica silenciosa da relação vítima-agressor; é claro que a vítima precisa de quebrar esse círculo e de comunicar com aqueles que a podem ajudar. Mas até pela gigantesca dose de vergonha e de humilhação que o bullying provoca, e que é aquilo que em última análise consome a vítima, quebrar esse círculo não pode ser nunca passar do silêncio para a praça pública. Quando tal acontece, o efeito é o contrário daquele que se pretende atingir — não estamos a ajudar a vítima, mas a prejudicá-la ainda mais. É por isso que o cyberbullying é um desafio muito mais assustador do que o bullying propriamente dito: a amplificação da humilhação atinge o agredido de um modo muito mais profundo do que as agressões físicas. Ora, não é preciso ser-se génio, nem licenciado em Psicologia, para perceber isto. Basta ter um mínimo de sensibilidade — e pensar um bocadinho antes de partilhar.
Jornalista; jmtavares@outlook.com
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