Psiquiatra Ana Beatriz Silva destaca que dedicação das vítimas e incentivo dos educado
POR KHRYST SERPA da DM
Dez mil horas! Parece muito, mas é o tempo que especialistas afirmam ser necessário para que alguém se torne expert em algo que tenha certo talento inato. Este período equivale a um total de 20 horas semanais durante dez anos de treino e dedicação, seja no esporte, na música, nas ciências exatas, nas inúmeras vertentes das artes ou em qualquer outra atividade que a criança ou adolescente se mostre relativamente bom. E esta é a maior ferramenta de que tem se valido pais, educadores, agentes de saúde mental e até as próprias vítimas de bullying para superar as marcas que esta experiência traumática deixa na vida de crianças e adolescentes. Tendo em vista que as vítimas deste mal costumam se isolar, evitam sair e se socializar, reverter este tempo de isolamento em treino é um santo remédio.
A médica Ana Beatriz Barbosa Silva, especialista em psiquiatria pela UFRJ, e presidente da Associação dos Estudos do Distúrbio do Deficit de Atenção (AEDDA) de São Paulo, em seu livro Mentes Perigosas na Escola: Bullying, cita como exemplo Mozart, que já compunha há cerca de dez anos, quando conseguiu dar vida ao concerto que é considerado sua obra prima (nº 9, K. 271). Ela também afirma que o reconhecimento e incentivo dos pais e educadores são fundamentais para estimular o indivíduo a não abandonar os treinos. E cá entre nós, como se sentirá, na vida adulta, um bullie (valentão, agressor), ao saber que seu chefe, um profissional inquestionável, era aquele garoto desajeitado a quem ele agrediu insistentemente durante o período escolar?
Ana Beatriz usa o termo “resiliência” (aquele efeito semelhante ao do elástico) para se referir ao impulso motivador que a revolta por ser agredido gera nas crianças, alimentando a vontade de ser cada vez melhor em algo, e um dia receber reconhecimento por isso, ao invés de agressões e intimidações pelos pátios da escola. Grave é salientarmos que nem todas as vítimas se comportam assim. Há aquelas, que por serem expostas a situações traumáticas mais intensas e/ou prolongadas, ou ainda aqueles que, por predisposição genética (pais com algum tipo de distúrbio mental), adoecem gravemente, desenvolvendo casos de esquizofrenia, psicose, resultando até em suicídios e homicídios.
Sim, o bullying é um grave problema de saúde pública e deve ser radicalmente combatido. Inúmeras são as alternativas e tratamentos oferecidos àqueles que são vitimizados pelo bullying. Mas, e os bullies? Quais as medidas a serem tomadas a seu respeito? Partindo da perspectiva de que os agressores são crianças e adolescentes com histórico de lar desestruturado, pais permissivos em excesso e desvio de caráter não corrigido adequadamente, a falta de empatia destes “valentões” os coloca em posição de difícil repreensão, já que não conhecem limites, e puní-los não lhes levaria a pesar a consciência. É uma complicada missão, mas que deve ser levada a sério. Talvez esse processo leve anos, talvez nunca tenha efetividade. Fato é que a omissão dos pais e da comunidade escolar, alegando que tais casos de bullying não existem, prejudicam as campanhas antibullying, além de encorajar os bullies, já que eles se sentem protegidos pela cortina de negligência estendida pelos pais e educadores para continuarem a atormentar a vida de seus colegas mais frágeis.
Nos Estados Unidos, onde a incidência de bullying entre os jovens é altíssima e com finais catastróficos, algumas pesquisas salientadas por Ana Beatriz Silva apontam que a reincidência dos bullies em casos de agressão, resultará uma parcela considerável de “adultos violadores das regras sociais básicas para a boa convivência e/ou francamente delinquentes”.
Outra importante questão levantada pela médica psiquiatra em seu livro é que portadores de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade) apresentam potencial perfil para se tornarem vítimas de bullying. O comportamento hiperativo (físico/mental) e a aparente dificuldade em se concentrar em alguma coisa fazem com que sejam alvo de represália por parte de colegas, que os atacam verbal e fisicamente, sem entender que estas agressões podem agravar e muito o estado de saúde deste indivíduo. Mesmo pacientes com TDAH que estejam em tratamento podem apresentar piora significativa em seu quadro clinico devido às intimidações e violências a que são expostos. As vítimas de bullying são também aquelas que não sofrem agressões diretas, mas que presenciam os ataques a outros colegas e absorvem o trauma por empatia.
Exemplos de famosos que superaram os traumas causados pelo bullying através de dedicação são citados no livro da psiquiatra. O cineasta norte americano de origem judaica Steven Spielberg sofreu com as ofensas de seus vizinhos e colegas de escola durante toda a infância pelo simples fato de ser judeu. Dedicou-se à paixão que tinha por cinema e venceu! Seu aclamado e premiado filme A Lista de Schindler (1993) é considerado um dos mais fiéis ao horror vivenciado pelos judeus, inclusive por sua avó, uma sobrevivente de Auschwitz.
O jogador inglês David Beckham sempre foi apaixonado por futebol. Aos oito anos de idade já estava matriculado numa escolinha. Seus chutes, fortes e precisos causavam admiração em todos. Em 1993 já era titular do Manchester United, clube pelo qual tinha profundo respeito. Teve uma carreira impecável no futebol, além de contratos e campanhas publicitárias milionárias, mas nem sempre foi assim. Principalmente na adolescência, quando todos os colegas de David queriam “curtir”, ele só pensava em se dedicar e dar o melhor de si nos gramados. Foi apelidado de “mulherzinha” pela turma. Em 2005 juntou-se à campanha Beat Bullying (Acabe com o Bullying), iniciativa da BBC Radio 1, e ainda desenvolve outros projetos sociais com sua escolinha de futebol, a David Beckham Academy.
Tragédias anunciadas
O bullying é a forma de violência mais democrática dentre todas. Não escolhe idade, classe social, cor, credo, gênero. Afeta a todos quantos forem considerados vulneráveis, pelos motivos mais fúteis e irracionais. O peso, a cor ou a textura do cabelo, a classe social, as deficiências físicas e intelectuais, o estilo de vestuário. Tudo é motivo para as injustificáveis agressões. Ferramentas tecnológicas que deveriam servir para o bem comum, hoje são aliadas de pessoas inescrupulosas, capazes das mais diversas atrocidades, blindados pelo anonimato da internet. É o cyberbullying, que vem ganhando força e adeptos, e assombrado a vida de muitos estudantes.
A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância (Abrapia) realizou uma pesquisa entre meados de 2002 e 2003 com alunos de 5ª a 8ª série – hoje 6º e 9º ano – do ensino fundamental entre escolas públicas e particulares, que revela números alarmantes sobre o bullying no Brasil. 40,5% dos entrevistados admitiram ter participado, seja como agressor ou vítima, de alguma situação de violência dentro da escola; 50,5% dos envolvidos são do sexo masculino; 60,2% das agressões presenciadas ocorrem dentro da sala de aula; 50% das vítimas declararam não relatar nada aos pais ou professores. Apesar de a violência dentro do âmbito escolar existir quase que desde sempre, e o termo ter sido fundado e estudado a partir da década de 1970, campanhas antibullying no Brasil só passaram a ser realizadas a partir de 2001.
No dia 11 de março completará 7 anos do Massacre de Winnenden, sudoeste da Alemanha, que vitimou 16 pessoas entre o próprio atirador, Tim Kretschmer, que se suicidou. O tiroteio começou na escola onde ele estudava, e terminou numa loja de automóveis nas proximidades. Em 2004, em Remanso, na Bahia, outro rapaz, também de 17 anos, entrou atirando na escola em que estudava, matando duas pessoas. Ele tentou suicídio, mas foi impedido e desarmado. O estopim para o acesso de fúria teria sido causado pelos baldes de lama que colegas jogaram em sua cabeça. Samuel Teles da Conceição, 17 anos veio a óbito vítima de meningoencefalite purulenta e contusão cerebral dias após ter sido agredido fisicamente com socos na região da cabeça por colegas, dentro da escola. O possível motivo? O novo corte de cabelo do garoto não agradou.
Em 2006, em Saint Louis, EUA, Megan Meier de 13 anos cometeu suicídio após seu namorado virtual terminar o relacionamento e gerar transtornos à garota, ofendendo-a. “O mundo seria melhor se você não existisse”, disse o suposto namorado. Após a morte da garota, foi-se descoberto que o tal namorado era na verdade um perfil falso criado por uma vizinha de 47 anos, que criou a conta no MySpace com o auxilio da filha. Ela foi condenada a 3 anos de prisão. Finais trágicos como estes, de bullying e cyberbullying, poderiam ter sido evitados caso houvesse maior sensibilidade e preparo dos pais e educadores em identificar e repreender a violência nos espaços por onde estes jovens transitam.
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