por Karine Zaranza - Repórter
Isabela Serpa foi vítima de bullying na escola. Hoje aos 20 anos, ela recorda que ser alvo de apelidos e xingamentos, aos 11 anos, por seu biotipo físico foi difícil. "Eu tinha medo de ir pro colégio, chorava, pedia para não ir. Pedia pra minha mãe colocar na agenda que se eu passasse mal eu poderia voltar para casa. Ainda tenho trauma com meu corpo, não uso roupa sem manga porque eles falavam do meu braço", relata.
O sofrimento da estudante foi velado por seis meses. Ela calava enquanto seus opressores atacavam. O fim das repetitivas agressões verbais e psicológicas só cessou quando os pais perceberam e exigiram da escola uma solução. "Até então eles achavam que era apelido, brincadeira. Com as denúncias dos meus pais, eles passaram a investir em palestras para os alunos e professores. Melhorou", conta.
O bullying- termo da língua inglesa que designa comportamentos agressivos que ocorrem de forma repetida com intenção de causar dano físico ou moral nas pessoas - é realidade nas escolas, públicas e particulares. A discussão sobre o efeito que esses comportamentos podem causar aos estudantes ficou ainda mais forte com a repercussão da série de TV "13 Reasons Why", que trata de bullying e suicídio em uma escola americana.
Assim como Isabela, cerca de 46% dos alunos do 9º ano do ensino fundamental em instituições de ensino do Ceará afirmaram que foram magoados, ridicularizados ou ofendidos por colegas de classes em situações persistentes. Os dados, conforme o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, refletem a realidade de 2015.
O levantamento revela ainda os motivos. No Ceará, a aparência do rosto (8,4%) e do corpo (15,4%) lideram as razões das agressões. Depois, aspectos relacionados a cor ou raça (5,2%), religião (3,7%) , orientação sexual (1,8%) e região de origem (1,3%). Outros motivos somaram 64,2%.
Os comportamentos agressivos ocorrem tanto na rede pública quanto na privada. Os índices de alunos ofendidos no Ceará são 45,4% em instituições públicas e 50,8% em instituições particulares. Quando interrogados se já praticaram intimidação contra os colegas de escola, 18,7% de alunos responderam que sim. Destes, 23,6% são do sexo masculino e 14% do feminino.
Subnotificação
Os números da pesquisa revelam uma situação que a gestão municipal e estadual não conseguem dimensionar. Nem a Secretaria Municipal de Educação (SME) nem a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc) possuem número de registros de bullyings nas escolas. O Centro de Referência em Direitos Humanos do Governo do Estado é o único equipamento que contabiliza esse tipo de registro.
No entanto, conforme a coordenadora do Centro, Daniella Alencar, os casos de bullying são subnotificados. De 2013, quando o equipamento foi criado, até hoje, foram apenas 29 denúncias. "A subnotificação existe pela invisibilidade das questões de bullying dentro das instituições. Na verdade, a grande maioria das pessoas que nos procuram chegam com casos que passam a ser condutas criminosas, quando acontece uma ameaça de fato ou até mesmo lesão corporal. A maioria das vítimas fica num estado emocional tão fragilizado que acaba não procurando ajuda tanto da instituições de ensino ou dos familiares".
O discurso de Daniella se completa ao do Professor Doutor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), João Paulo Pereira Barros. Ele também aponta a recente atenção para esses fenômenos e a naturalização das práticas de intimidação sistemática, muitas vezes encaradas como não sendo violência propriamente.
"Além disso, diversos estudantes não se sentem suficientemente confiantes e suficientemente amparados psicossocialmente e também do ponto de vista institucional para compartilhar seus sofrimentos", alerta ele. O professor também pondera que o que se convencionou chamar de bullying ainda é permeado por imprecisões e achismos, o que pode gerar tanto subnotificação quanto supernotificação.
Causas e efeitos
Além de produzir efeitos de sofrimentos para quem está direta ou indiretamente envolvido, pode acarretar fragilização de seus vínculos sociais e institucionais, aponta João Paulo. "Em minhas pesquisas de mestrado e doutorado, por exemplo, acompanhei casos de crianças e adolescentes que abandonaram a escola e até relatos de tentativas de suicídio decorrentes de experiências categorizadas como bullying".
O problema que aparece na escola é, na verdade, reflexo da violência social que vivenciamos, defende João Paulo. O pesquisador relaciona os principais alvos de violência escolar (negros, populações LGBTs e pessoas com deficiência) como sendo alvos da violência social. O comportamento agressivo costuma ser acompanhado de processos de estigmatização e segregação de sujeitos vistos como "diferentes", "fora do padrão" ou "inferiores".
"Logo, isso nos convoca a tratar a violência escolar, assim como outras expressões contemporâneas de violência, como uma questão pública, ampliando os debates, no cotidiano da escola e também em outros espaços educacionais, sobre racismo, gênero, inclusão e como nossa sociedade lida com diferenças. Do contrário, corremos o risco de legitimar violências e mascarar, sob a categoria bullying, complexos e históricos processos de desigualdade social e dominação".
Ações promovem cultura de paz
Há um ano, entrou em vigor a Lei 13.185, que estabelece medidas de prevenção e combate à prática nas escolas do País. A nova legislação federal instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), responsável por capacitar professores e equipes pedagógicas das escolas para prevenir situações de agressão física, psicológica e moral contra crianças e adolescentes, dentro e fora das escolas.
O texto não prevê punições. Exige, no entanto, que haja capacitações aos professores e envio de relatórios bimestrais aos governos estadual e municipal sobre ocorrências que se enquadrem nos termos definidos pela lei como bullying, para o desencadeamento de ações.
No Ceará, as ações são muito mais de promoção de uma cultura de paz do que de enfrentamento e embate. A Secretaria de Educação do Ceará informou, através de nota, que o trabalho é feito de forma multidisciplinar, desenvolvendo programas e projetos para promover a prevenção às violências. A Seduc foca no projeto Diretor de Turma, que teve início em 2008 e hoje está universalizado na rede, cujo foco é promover um diálogo com todos os agentes. Um professor da escola atua como diretor de uma turma, acompanhando todo o desempenho escolar desses alunos até o fim de sua escolarização, identificando as necessidades, fazendo as intervenções e construindo as pontes. Há ainda a Célula de Mediação Social e Cultura de Paz para fomentar ações voltadas à gestão pacífica de conflitos.
Mediação
Na rede municipal, Lucidalva Bacelar, coordenadora de Articulação da Comunidade e Gestão Escolar da Secretaria Municipal da Educação (SME), explica que as ações seguem uma linha preventiva. A principal estratégia é a Célula de Mediação de Conflitos que hoje é composta por uma equipe na sede e uma responsável por cada distrito de educação. "A nossa linha é que a escola, por inteiro, seja mediadora. Porque assim há um empoderamento da escola em relação ao diálogo", justifica.
A coordenadora explica que, no ano passado, foi criado um sistema para que as escolas identificasse essas ações indisciplinares. "A gente pensa que precisa mais aperfeiçoamento, mas não como um sistema que categorize o bullying. A gente percebe que as questões são mais de ordem afetiva e de indisciplina que propriamente como bullying", defende ela que não enfatiza o tema. "A gente não evita falar. Não focamos excessivamente no bullying. Trabalhamos a temática. Quanto mais reforçar, pode valorizar mais a violência que a paz. Trabalhamos a mediação e não o conflito".
Para o professor da UFC, João Paulo Pereira Barros, as principais reações das escolas, pesquisadas por ele, frente ao bullying, pautavam-se no aumento da punição aos alunos "agressores", assim como na ampliação dos mecanismos de vigilância, como a reivindicação de monitoramentos eletrônicos no espaço escolar. "Sobressaem-se práticas de caráter repressivo, ainda que muitos profissionais avaliem sua pouca efetividade na diminuição da incidência de violência. Tais estratégias têm sido responsáveis por tornar a violência entre pares na escola uma questão eminentemente médico-psiquiátrica, e ou jurídica".
Personagem
Livro infantil trata fenômeno com fábula
O jornalista e escritor cearense Marcelino Júnior lançou o livro "O Manifesto da lagarta", obra que utiliza a fábula para tratar sobre o bullying. Percorrer os passos da Lagarta Leila é acompanhar todos os conflitos e dúvidas que a adolescência traz. No meio disso, vemos uma Leila que é uma vítima de bullying na escola, que sofre com o isolamento do grupo e com agressões verbais. O autor estará na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro com sua obra e também trabalha na criação de um aplicativo sobre bullying para a região Norte do Ceará
Canais de denúncia
Ouvidoria (Seduc): 155
Centro de Referência em Direitos Humanos do Estado do Ceará: (85) 3101.2989
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