segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ESCOLAS TAMBÉM SÃO RESPONSÁVEIS PELO BULLYING

Uma escola do Rio de Janeiro foi condenada judicialmente a pagar R$ 35 mil, no ano passado, por danos morais à família de uma ex-aluna vítima de bullying, por agressões que ocorreram em 2003. 
O episódio não é um caso isolado no Brasil. Já existe uma jurisprudência crescente no sentido de responsabilizar tanto a instituição de ensino quanto a família do agressor, menor de idade, por não ter tomado medidas suficientes para evitar ou lidar com o problema. Diante desse cenário, as escolas não têm mais como ignorar o bullying. Para prevenir as agressões e construir uma cultura de paz, na opinião dos especialistas, não basta apenas instituir regras ou punições, é preciso compreender melhor esse fenômeno social, suas causas e a importância do processo educacional no aprendizado da convivência. 
Antes de mais nada, é necessário saber identificar o bullying. Segundo a pedagoga Telma Vinha, doutora em Educação e professora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora na área de Relações Interpessoais e Desenvolvimento Moral, o termo é utilizado para designar atos agressivos entre os estudantes, e sua prática apresenta mais de uma característica típica. Os aspectos principais relacionados ao bullying são quatro: há intenção do(s) autor(es) em ferir; são atos repetidos contra um ou mais alvos constantes; há uma espécie de concordância do alvo sobre o que pensam dele (por isso há crianças obesas que são alvos e outras não) e há um público que prestigia as agressões – os ataques são escondidos dos adultos mas nunca dos pares. “Vale a pena destacar que esses espectadores alimentam o problema, dando poder, prestígio [ao autor], por compactuarem com o que ocorre. Muitas vezes, este público participa com risos e olhares, mantendo a imagem de que isto é divertido e que pertence ao grupo dos mais poderosos ou, pelo menos, não faz parte do grupo dos mais ‘fracos’. Há também o medo de se tornar a ‘próxima vítima’. É preciso ficar do ‘lado do mais forte’”, ressalta Telma.
Mesmo quando às vezes tomam conhecimento do problema, algumas escolas não agem para tentar solucioná-lo; preferem fazer de conta que nada está acontecendo. Foi o caso das instituições de ensino públicas e privadas pelas quais passou Alexandre Saldanha, vítima de bullying durante toda a infância e adolescência, que acabou se tornando advogado e dedicando sua vida profissional e acadêmica ao combate desse tipo de violência. Saldanha conta que por ter sido uma criança “gordinha” e com limitações motoras devido a sequelas de uma hemiparesia direita, decorrente de seu nascimento prematuro, sofria com gozações perversas por parte dos colegas, que o levaram ao isolamento. Quando criou coragem para quebrar o silêncio, não obteve apoio. “As direções das escolas assumiram uma política corporativa, encobrindo o fato e afirmando que aquela situação se tratava de uma brincadeira de criança e, por isso, nada podiam fazer”, relata.
Do ponto de vista legal, o bullying – com essa denominação – não é crime, porém já existe uma proposta, que faz parte do projeto de reforma do Código Penal, para criminalizar a prática e instituir pena de um a quatro anos de prisão. Entretanto, atualmente, tanto as escolas quanto os professores e as famílias dos agressores podem ser responsabilizados pelas consequências do ato e condenados a pagar indenizações às vítimas por danos morais, como vem ocorrendo e sendo noticiado pela mídia cada vez com mais frequência, com base em dispositivos do Código Civil, da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Como o bullying acontece dentro das dependências do estabelecimento de ensino no período de estadia dos educandos, vê-se a figura da responsabilidade das escolas pelos danos causados pelos seus alunos entre eles ou a terceiros”, afirma Alexandre Saldanha, que atualmente mantém um blog sobre bullying e Direito.
No caso do cyberbullying, em que as agressões ou ofensas acontecem no meio virtual, a responsabilidade só pode ser atribuída também à escola se o aluno usar o computador da instituição de ensino para o seu ataque aos colegas. Caso o problema ocorra fora da escola, são os pais ou responsáveis que terão que arcar com as consequências dos atos do filho menor de idade.
 
Conscientização
Ainda é difícil precisar a gravidade do bullying no Brasil. O estudo Bullying no Ambiente Escolar, realizado pela organização não governamental Plan Brasil, voltada para a defesa dos direitos da infância, revelou que o ato foi praticado e sofrido por 10% dos alunos pesquisados. Nesse estudo, denominou-se bullying a agressão a uma mesma pessoa superior a três vezes durante o ano letivo. Participaram da pesquisa, concluída em 2010, 5.168 estudantes, além de pais, responsáveis, professores e gestores de instituições nas cinco regiões do País. Já em um estudo feito em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase um terço dos alunos respondeu já ter sofridobullying alguma vez na vida.
Com a exploração crescente do tema pela mídia, muitas vezes sem as informações adequadas, não é incomum que exista uma confusão entre o que faz parte dos conflitos naturais do processo de convivência na infância e adolescência e o que pode ser configurado como bullying. Por causa dessas distorções, problemas que deveriam ser tratados no âmbito escolar estão indo parar nos fóruns e nas delegacias. É com o intuito de diminuir essas ocorrências que o Centro de Apoio Operacional (CAO) da Infância e Juventude do Ministério da Justiça de Santa Catarina desenvolve desde 2010 a campanha Bullying, isso não é brincadeira. O programa integra as ações de uma lei antibullying, aprovada no Estado de Santa Catarina em 2009. “Percebemos que havia um grande número de crianças e adolescentes que eram apontados como autores de ato infracional quando, na verdade, haviam praticado uma infração disciplinar. Assuntos que deveriam ser resolvidos dentro da escola estavam sendo judicializados”, explica a promotora de Justiça e coordenadora do CAO da Infância e Juventude, Priscilla Linhares Albino. Segundo a promotora, muitas vezes coisas simples como um empurrão ou o uso de um apelido, em episódios esporádicos, estavam sendo confundidos com atos infracionais. Priscilla ressalta que todos os comportamentos inapropriados devem ser observados pelos responsáveis nas escolas; entretanto, isso não significa que essas ações possam ser classificadas como bullying.
Para esclarecer a comunidade escolar, foram desenvolvidos e enviados materiais sobre o tema para todas as instituições de ensino catarinenses. O Ministério da Justiça também promoveu palestras para professores, psicólogos e assistentes sociais. Depois da campanha, segundo Priscilla Albino, houve uma mudança no comprometimento das escolas e dos educadores, além da redução do número de casos encaminhados para a Justiça.
 
Formação e prevenção
Para combater o bullying, não basta punir o culpado. Aliás, muitas vezes o autor da prática também já foi vítima de violência. Para ter resultados efetivos e consistentes, as escolas precisam atuar nas causas, buscando compreender melhor o contexto educacional. “As medidas punitivas sugeridas são controversas e humilhantes, podendo acarretar sentimentos de raiva e vingança posterior. Além disso, fazem com que o autor ‘quite o débito’, não possibilitando a tomada de consciência do alcance dos seus atos”, alerta Telma Vinha. A pedagoga destaca a importânciade investir na qualidade das relações interpessoais, a partir de um exercício de resolução de conflitos cotidianos, e da realização de um trabalho em que os alunos desenvolvam o autorrespeito e, consequentemente, o respeito pelo outro. Telma não acredita que propostas focadas apenas no estabelecimento de regras e deveres contribuam para uma convivência ética e saudável.
O advogado Alexandre Saldanha também não aposta no modelo punitivo tradicional como forma de evitar o bullying. Saldanha propõe o uso de uma forma alternativa à justiça comum. “A justiça restaurativa promove o diálogo entre as partes envolvidas em agressões, sem prévios julgamentos de quem está certo ou errado. Todos são ouvidos igualmente e, da mesma forma, são envolvidos em torno do comprometimento de solucionar pacificamente o conflito”, observa.
Para Nei Alberto Salles Filho, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR) e coordenador do Núcleo de Estudos e Formação de Professores em Educação para a Paz e Convivências (NEP), o bullying é apenas parte de uma situação muito mais ampla e complexa. 
“Embora seja um problema sério, é o que podemos chamar de ‘ponta doiceberg’ de um processo de falta de respeito, intolerância, de total identificação com o outro; ou, dito de outra forma, obullying é o resultado da falta de um clima escolar acolhedor e relações de convivência positivas”, resume. Nei Salles acredita que o contexto em que as crianças e os adolescentes estão crescendo, observando muitas vezes adultos violentos, competitivos e intolerantes na família, no trânsito e até nas escolas, influencia esses comportamentos. Para lidar com essa realidade, o professor da UEPG defende a formação ampliada dos docentes, de modo a capacitá-los para perceber a complexidade do processo educacional. O trabalho do NEP, segundo o coordenador, baseia-se nos processos de restauração dos valores humanos, mediação de conflitos, qualificação das convivências escolares e fortalecimento da gestão educacional voltada à educação para a paz, que são colocados em prática pelos professores em suas instituições de ensino depois do curso.
A escola não é a única responsável pelo trabalho de ensinar a boa arte da convivência. A família, como agente da socialização primária, exerce papel fundamental no aprendizado do viver em sociedade. Mas, para a professora da Unicamp, o fracasso da família nessa tarefa não implica no mesmo resultado pela instituição de ensino, onde acontece a socialização secundária. “A escola não pode depender do bom desempenho da família para educar seus alunos para a vivência em uma sociedade democrática e contemporânea e nem esperar receber alunos ideais como pré-requisito para ter êxito em sua tarefa. Aliás, as crianças que apresentam dificuldades provavelmente decorrentes do ambiente familiar são as que mais precisam do apoio da escola para se inserir socialmente”, defende Telma Vinha.

Matéria publicada na edição de setembro de 2012 da revista Gestão Educacional.

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