sábado, 3 de novembro de 2012

MAR´JUNIOR é entrevistado pelo MAGAZINE do Diário de Notícias de Portugal


A formiga e o elefante

A formiga e o elefante

por Rita Penedos Duarte Fotografia de Filipe Pinto/Global Imagens
Chamam-lhe assédio moral, mas o palavrão que estamos habituados a ouvir é bullying. E não existe apenas entre adolescentes: no local de trabalho também está a aumentar. Em 2011 registaram-se 140 casos, cerca do dobro do ano anterior. Mas esta é apenas a ponta do icebergue. Há muitos que ficam na sombra, já que a prova é difícil, os pares não cooperam e, claro... a justiça tarda.

«Diziam-me que iria perder porque nunca se viu uma formiga vencer um elefante», lembra Ana Maria (nome fictício). «Já trabalhava há 18 anos. E em 2004, no auge de uma carreira de sucesso e com reconhecimento de grande competência, a empresa despediu-me. Impugnei o processo. E dei origem a um dos primeiros processos judiciais por violação de correspondência em Portugal.» Ana Maria venceu e dois anos e meio depois, foi reintegrada como secretária do diretor de Recursos Humanos da empresa de transportes. Mas a batalha não foi fácil. Nem estava ganha. «Desde cedo, o meu diretor revelou-se mandatário da administração para proceder a uma ação brutal de terrorismo psicológico. O objetivo era levar-me a desistir do processo judicial e a aceitar uma indemnização reduzida para abandonar a empresa. Desde a reintegração até ao encerrar do processo passaram 18 meses.»

Foram quatro anos de provação numa empresa que mostrava ostensivamente que não a desejava. Tratavam-na mal, não lhe davam trabalho para fazer ou, quando este era pedido, tratava-se de pequenos recados ou listagens sem significado. Ana Maria apresentou novo processo contra a empresa, desta vez sob a acusação de mobbing. Tudo acabou com um acordo extrajudicial a seu favor. Mas a grande maioria dos casos em Portugal não termina assim. Quando o caso se baseia em violência psicológica continuada, a prova é muito difícil.

Referido no Código do Trabalho como uma contraordenação muito grave, o assédio moral pode traduzir-se em criticar um colaborador, pedir-lhe o cumprimento de prazos impossíveis, retirá-lo de funções de responsabilidade e colocá-lo a fazer trabalhos triviais, ignorá-lo, sonegar informações ou apresentar trabalhos dele como sendo seus e ridicularizá-lo em frente dos pares. De forma sistemática e durante um longo período de tempo.

Este tipo de comportamentos leva a desequilíbrios físicos e psicológicos: insónias, dores no corpo, aumento da tensão arterial, dependência de álcool e depressão. Paulo Pereira de Almeida, investigador na área de Sociologia do Trabalho, no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), lembra ainda o caso da vaga de suicídios na France Telecom, na sequência de um plano de reestruturação da empresa, entre 2007 e 2009. «Em 18 meses foram 25 suicídios, o que ilustra bem até que ponto a pressão continuada conjugada com situações de assédio moral pode chegar.» Provocar a saída do trabalhador, ou de um conjunto de trabalhadores, é um dos objetivos do agressor, dizem os especialistas. E todos são unânimes: qualquer pessoa pode começar a ser vítima.

Marta (nome fictício) é um bom exemplo. Aos 30 anos, sempre pensou que no início da vida profissional, mais competitiva, poderiam surgir situações complicadas, «mas sempre achei que viessem de pares mais competitivos, nunca do próprio orientador». No entanto, enfrentou duras pressões. «Senti que passava os limites da razoável pressão de um orientador quando comecei a perceber insultos dissimulados nos seus contactos comigo. Uma crítica implícita, e constante, das minhas caraterísticas pessoais. Individualista, gananciosa, teimosa, mal-educada, ciumenta... foram algumas palavras usadas...» O trabalho de Marta mantinha a qualidade habitual, pelo que nem era referido, mas Marta começou também a sentir-se posta de parte pela restante equipa na empresa de consultoria. «Evitavam serem vistos comigo e tinha a clara sensação de que andavam informações a circular sobre mim. Falavam nas minhas costas. A dada altura fiquei com o acesso cortado à informação necessária para completar as minha tarefas e não recebia os mesmos materiais que os outros colegas.»

A vítima de assédio moral, ou mobbing, é «aquela que, de alguma forma, é diferente do conjunto estabelecido [tanto por ser brilhante, como por ser medíocre ou altamente criativa]», explicam Luísa Oliveira e Luísa Veloso num artigo do livro Portugal Invisível (ed. Mundos Sociais), do sociólogo e professor do ISCTE António Dornelas. O mesmo artigo refere que qualquer pessoa pode começar a ser vítima, embora a persistência desta situação até chegar ao suicídio só ocorra em casos de maior fragilidade - que pode estar associada a questões económicas, sociais, de natureza física ou psicológica. Basta que o agressor as identifique. Até porque, muitas vezes, se revê nelas.

«A minha infância e adolescência levaram-me a acreditar que, para que as pessoas me respeitassem, eu teria de ser um homem violento», diz o brasileiro Mar" Júnior, ator e autor do livro autobiográfico Bullying: Eu Sofri, Eu Pratiquei, Eu Hoje Conscientizo. «Fui criado com muita rigidez, escutando muitos palavrões, gritos e tomando muita pancada. É natural que, quando vamos ganhando idade, a gente queira fazer que as pessoas sofram o que nós sofremos. Aos 13 anos, passei a ser o agressor, deixando de ser só a vítima. Aproveitava algumas situações em que me sentia superior. Eu sentia prazer vendo os outros serem humilhados e maltratados.»

Se as causas e as formas de atuação são diferentes, a maneira como se reage a este problema também é diversa. Por isso, a partir de determinado momento, Marta procurou «entrar no jogo». «Como o confronto direto era impossível e recebido como uma afronta, tornei-me falsamente dócil e submissa, mas continuo a sentir as mesmas coisas e a ter opiniões. Acabei por encarar isto como uma estratégia de sobrevivência. E tem resultado. Já não estou tão "em foco" e passo mais despercebida. Mas não tenho dúvidas de que esta situação me tirou confiança e por isso também reduziu a minha produtividade, criatividade e entrega no trabalho.» Nesse sentido, o caso de Ana Maria não é muito diferente. A secretária procurou outra vida quando saiu, mas a experiência não a deixou indiferente. «Trazia a camisola da empresa colada à pele. Arrancá-la deixou-me em carne viva.»

Apesar de saber que não pode alterar o passado, Mar" Júnior tenta agora redimir-se. Violento nos atos e nas palavras até ao início da idade adulta, mudou de atitude quando a filha nasceu, em 1985. «Comecei a entender que o amor era mais forte do que o ódio ou a raiva.» Por isso este ano vai publicar a autobiografia onde explica o seu percurso. E desde 2004 que apresenta nas escolas brasileiras o projeto Bullying com uma companhia de atores, cujo objetivo é mostrar aos alunos que «a vida é feita de oportunidades. E essas surgem em qualquer idade».

Em Portugal não há autores confessos de bullying a escrever livros, mas a situação é conhecida.
«As vítimas [de assédio moral e sexual] normalmente têm medo e vergonha de expor a situação», diz Sandra Oliveira, presidente da CITE. Por outro lado, confiam pouco nas organizações que têm autoridade para tratar desta matéria, acham que não vale a pena fazer queixa porque a prova é muito difícil.»

Embora o Código do Trabalho contemple que o empregador deve «proporcionar boas condições de trabalho, do ponto de vista físico e moral», este é «um dever legal das entidades empregadoras muito pouco cultivado, senão mesmo «esquecido» , diz Sandra Ribeiro. Segundo a responsável, deveriam ser estabelecidos procedimentos internos para a denúncia, apuramento dos factos e aplicação de medidas corretivas. «A CITE está neste momento a desenvolver, em conjunto com os parceiros sociais e outros serviços públicos, uma proposta de código de boas condutas para aplicação voluntária das empresas», adianta.

«Neste contexto de fragilização e desregulação do mercado de trabalho, uma das preocupações essenciais do regulador devia ser com o assédio moral», acrescenta Paulo Pereira de Almeida. Para este especialista, envolvido no Observatório das Boas Práticas Laborais, «vivemos uma situação difícil do ponto de vista político, propensa a abusos, e isso parece-me preocupante. Até porque há informação suficiente sobre os milhões de euros que podem perder-se por ano em produtividade, em organizações e empresas onde há mau ambiente de trabalho. Os setores ou empresas em que há situações de assédio moral são pouco produtivos.»

Veja-se o exemplo da Cisco Systems Portugal, considerada a Melhor Empresa para Trabalhar em Portugal, pelo Great Place to Work Institute, nos anos de 2010 e 2011. «Aos nossos colaboradores é pedido um forte comprometimento com a política ética interna. Todos os anos assinam um código de conduta em que se comprometem a agir de acordo com os nossos elevados padrões morais e éticos. Se agirem contra este, podem ser alvo de processos disciplinares ou mesmo despedidos com justa causa. No caso de quererem reportar alguma situação menos clara relativamente a este aspeto, contam com uma equipa especifica e independente que assegura o cumprimento interno de todas as regras», diz Andreia Rangel, responsável de Recursos Humanos. Quando a equipa recebe alguma notificação, tem como responsabilidade investigá-la, avaliando todos os pontos de vista. Uma recomendação final é enviada para o departamento de recursos humanos que, caso seja necessário, procede à aplicação de medidas.

«Todos sabemos que só com um mercado de trabalho minimamente regulado, com mecanismos transparentes de compensação, em que as pessoas sentem que têm alguma estabilidade no emprego, é que há criatividade, produtividade e motivação», defende Paulo Pereira de Almeida. «O resultado é o crescimento económico. Não vale a pena dizer o contrário.»

Assédio moral em sentido amplo: engloba os diferentes sentidos atrás referidos.

Fonte: Einarsen, S. (2000). Harassment and Bullying at Work: a Review of the Scandinavian Approach. Aggression and Violent Behavior - citado por Luísa Oliveira e Luísa Veloso, in Assédio Moral no Trabalho - Vamos Fingir Que não Existe.

Luís Maia

Neuropsicólogo clínico e forense, mestre em Neurociências e doutorado em Neuropsicologia Clínica, professor do Departamento de Psicologia e Educação da Universidade da Beira Interior, é autor de E Tudo Começa no Berço, onde explica os comportamentos dos abusadores.

Fonte: Diário de Notícias de Portugal

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