As notícias se somam e todos os dias lemos algo do estilo: “Em menos de 24 horas, foram registrados 20 assassinatos na cidade e na Grande São Paulo (incluindo suspeitos em confrontos com a PM) — mais que o triplo da média diária de seis assassinatos registrada neste ano”. “Desde o começo deste ano até o dia 25 de outubro, 85 policiais foram mortos em todo o estado de São Paulo. O dado oficial, confirmado pela Polícia Militar, ainda não contabiliza a morte de um policial em folga, ocorrida na capital paulista.” E o que deveria provocar espanto se torna a rotina, quase um fait divers, aquelas notícias que se encerram em si, e que não tocariam a nossa existência (como o caso do mendigo que caiu num buraco em Goiás e foi salvo pelos bombeiros).
A situação de violência parece se democratizar. Na mesma semana em que essas notícias foram lidas, uma querida professora, minha orientadora do mestrado, saiu de casa para uma compra na rua principal da Pompeia, bairro de classe média alta da zona oeste paulistana. Ao chegar à loja, mesmo estranhando a ausência de vendedores e compradores, entrou. Foi imediatamente rendida, com a pergunta: “Veio ser assaltada?”. Com os braços amarrados e a cabeça encapuzada, foi levada a um quartinho, onde já se encontravam detidas as vendedoras e clientes. Da professora levaram carteira com documentos e pouco dinheiro — carteira e documentos recuperados horas depois. Vítima de maus tratos, com hematomas nos punhos, ela passou por aqueles momentos limites, que qualquer um de nós pode passar nos dias de hoje nessa cidade.
Quando a professora contava o episódio no dia seguinte, alguém comentou: “Sorte que não aconteceu o pior!” Sorte? Estamos acostumados a ouvir isso: “Ainda bem que não...” Ainda bem? Estamos aceitando como bom o menos pior? É sorte passar pelo vexame de ser manietado, encapuzado, viver a extrema violência de estar à mercê de alguém com uma arma na mão?
Aí escutamos o governador do estado destilar sua pérola: “O governo não vai retroagir um milímetro. É ir pra cima de criminoso. Polícia nas ruas e criminoso na cadeia.” É uma frase de efeito no calor dos acontecimentos, mas revela pouco alcance — embora o governo deva ter pulso firme, claro. A questão pede sim uma reflexão muito mais profunda. A violência existe porque muita coisa está sendo desleixada, e a principal delas é a educação.
De uma série de entrevistas e leituras dos relatórios sobre o tema da nova classe média preparados por Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE), da Fundação Getúlio Vargas, recupero um conceito pertinente para pensar o problema da violência em outro contexto, que não seja apenas o da “guerra sem trégua aos bandidos” — até porque também temos bandidagem em muitos outros níveis.
Dizia Neri, após utilizar diversas vezes a metáfora das décadas, que talvez devêssemos deixar de lado o calendário gregoriano, pois os pontos de inflexão substantivos de cada uma das últimas décadas no Brasil não se deram no início de cada uma delas. Quase todas coincidiram com os anos terminados em 4: “1964 (início do governo militar); 1974 (início da distensão política após o choque do petróleo), 1984 (o ano das Diretas-Já), 1994 (o ano do Plano Real) e 2004 (início da retomada do crescimento com a aceleração no emprego, quando ocorreu a maior queda da desigualdade da década). Isso sem falar em 1954, ano de suicídio de Vargas. Seguindo nesta tradição, o que 2014 nos reservaria, além da Copa do Mundo e das eleições presidenciais? Coroaria dois períodos de cinco anos de crescimento inclusivo, iniciados depois do fim da recessão de 2003 e da crise global de 2009? Se o período 2010-2014 constituir de fato uma nova pequena grande década, então os onze anos de 2003 a 2014 serão uma grande ‘grande década’”.
As previsões nem sempre se concretizam. O crescimento patina; voltamos aos poucos a nos acostumar com apagões; nossa telefonia celular é uma piada; perdemos tempo desnecessário em filas de cartório para autenticar um documento que nem será conferido pela repartição pública ou privada que o pediu (como se a minha existência fosse validada por um papel); a situação da saúde é menos preventiva do que deveria ser, e mais paliativa, quando se dá o atendimento nos postos de saúde — é um bom exercício de cidadania visitar esses postos e se escandalizar com o estado precário das instalações. E numa sociedade em que cada vez mais os habitantes se concentram nas metrópoles, a locomoção é um tormento e o transporte claudica — quando vejo algum desses pontilhões “estaiados”, penso nas fortunas que foram desviadas para pagamento de propinas. No fundo faltam projetos e metas para tocar o país adiante.
Mas sem dúvida o patamar da década não gregoriana que iniciará em 2014 deveria ter como núcleo o ataque ou combate à falta da qualidade da educação. Existem metas traçadas até 2021. Em 2022 celebraremos 200 anos de Independência, e será no terreno da educação que deveremos julgar se teremos ou não o que comemorar.
Esse é o grande desafio para combater a violência, para resolver o drama da saúde, a ineficácia da administração pública: colocar as novas gerações na escola, em tempo integral, numa década voltada especificamente para a qualidade da educação. Com metas para cada escola ou centro isolado de ensino, para instituições municipais, estaduais e federais, centros privados — para todo o país. “O brasileiro funciona quando há desafios”, dizia Neri. Se em termos gerais, nessa década que acabou, “demos aos pobres os mercados, a educação é o grande passaporte para os mercados, mas na verdade talvez esteja na hora de inverter os termos, e dar ao mercado pessoas mais preparadas, capacitadas nos bancos escolares. Hoje, entre nós, se discute muito o Estado versus Mercado e essa discussão está mal parada. São os tais dilemas. Corremos o risco de ficar com as piores qualidades do Estado e do Mercado, quando o segredo é usar o que os dois têm de melhor”, concluía Neri.
Há muitos anos li um texto em que o jornalista Elio Gaspari comentava o fato corriqueiro, nos Estados Unidos, de pais dedicarem algum dia ou horas da semana ou do mês, e ir dar aulas ou reforço pedagógico nas escolas frequentadas por seus filhos. Faz parte da cultura americana participar, dar seu tempo, mesmo pagando pelo aprendizado dos filhos.
Educação não é apenas problema do Estado, como previsto na Constituição, que até fixa percentual de investimento para isso. Educação é um problema da sociedade e da família. O professor em sala de aula não supre a ausência e a falta de participação dos pais na preparação das novas gerações. Nossa mentalidade de achar que a escola deve prover tudo faz parte do DNA do jeito brasileiro. Não é raro pais telefonarem ao professor para se queixar que o filho “levou nota baixa”. Num desses fatos que assustam, quase tanto quanto a professora agredida na loja da Pompeia, há alguns anos me ligou o pai de um aluno, com a reclamação da nota atribuída a seu filho. Era um docente universitário, ligando de Jabuticabal. Se nem ele, com titulação acadêmica, se deu conta de que deveria cobrar não do professor, mas do filho, maior empenho no estudo, que resposta lhe poderia dar?
Não é possível pensar no Brasil como um país próspero e socialmente justo sem um investimento sério em educação de qualidade, com a participação de toda a comunidade. Uma das chagas do país foi não ter investido em capital humano, em formação das novas gerações, como fizeram, por exemplo, países como a Coreia desde os anos 50, ou a China a partir dos anos 80, recuperando a quase completa destruição das universidades durante a Revolução Cultural. Até 1973, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo. Perdeu logo posição para a Coreia, hoje um dos países com o maior percentual de pesquisadores com pós-doutorado em todo o mundo. O resultado disso está nas ruas, nas novelas: um festival de Kias, Hyundai e por aí vai.
Se todos comprarem essa briga, seguramente os níveis de violência irão baixar, cidadãos cobrarão maior seriedade e compromisso dos governantes, e teríamos todos os motivos para comemorar orgulhosos os 200 anos de nossa vida de nação independente.
Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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