Uma das formas negativas da parentalidade é este reverso do espelho em que pais e mães insistem em se ver, ou apenas se rever numa outra realidade que nunca foram e que agora podem ser através dos filhos, qual procuração passada a menores aptos a beneficiarem geracionalmente de toda uma panóplia de inovação científica e tecnológica. A maior defesa das crianças tem sido as boas práticas dos médicos e o seu bom senso aplicado aos pais.
Segundo nos conta o semanário Sol, a obsessão da "boa" parentalidade desperta cedo, e antes dos 16 anos já estão a bater à porta dos consultórios para cirurgias mamárias, lipoaspirações, operações ao nariz, etc. Um dos argumentos é o bullying, um argumento defensivo contra o uso da força, e outros têm a ver, precisamente, com este mesmo tema, o de dotar os filhos de todos os ingredientes do paradigma de sucesso: ser mais bonito, mais alto, mais magro. Sem tudo isto, estes pais vêem-nos condenados a um insucesso quase inevitável. Por aqui se pode ver o efeito reduzido que hoje assumiram os numerosos tipos de beleza femininos construídos a partir de traços imperfeitos, feios por vezes, mas que imortalizaram mulheres ao longo de décadas, algo bem diferente da monótona repetição do tipo "telenovela" ou "imprensa cor-de-rosa".
Que dizer de uma sociedade que mede o amor parental por uma precoce e activa preocupação com o aspecto físico dos seus filhos? Que acredita que possuir os atributos do sucesso, ainda que artificialmente, basta para se ser bem-sucedido como alguém que se propõe anunciar pastas dos dentes para o resto da sua vida?
Há alguns anos, caíram sobre a minha secretária, nos meus livros e apontamentos, grandes e assustadoras tiradas sobre a parentalidade: a boa, a má, a subvertida e a pervertida. Quando já quase se dava como assente a existência de uma geração de pais dominados por filhos nos quais, literalmente, não tinham mão, começaram a surgir pais alheados da tarefa de educar, sem preparação alguma para o fazer, por vezes mais infantis que os próprios filhos, que, cedo, se introduzem numa sombria pré-delinquência, muitas vezes sem retorno. Talvez tudo tenha ainda começado pelas franjas de uma geração tomada pela droga, quando os avós começaram a faltar, mas rapidamente evoluiu para outras causas ou justificações.
A fraca parentalidade tem-se revelado transversal a todas as sociedades. Dantes falava-se em pais incapazes, depois em pais negligentes, depois em fracas competências parentais, mas tudo se reconduz ao mesmo: não sei ser pai, não sei ser mãe, nunca me ensinaram, é o que leio nas revistas, o que vejo e ouço nas televisões...
Numa ocasião, preciosa aliás, em que foi possível rastrear cinco mil crianças em fase de pré-escolar verificaram-se dados surpreendentes: entre 5% e 10% das crianças tinham problemas de audição, de visão e de fala e os pais nunca tinham dado por isso; somavam-se os problemas visíveis da dentição e, para grande espanto dos pediatras, problemas de nutrição em zonas onde as famílias pertenciam a uma baixa classe média apta a prover à sua própria alimentação. Que se passava, então? A pressa. Pressa em sair de casa de manhã, pressa em regressar a casa ao fim da tarde levavam os pais a adiar o pequeno-almoço para o intervalo e o jantar - a criança vinha a dormir tão bem! - para o dia seguinte.
Dá que pensar qual será o paradigma de sucesso que se poderá alcançar por esta via, na qual a criança chega à primária com uma série de capitis deminutio que dificilmente perderá em tempo útil; como dá que pensar aquilo em que se transformou o valioso conceito de cuidar, cuidar o outro, o mais fraco e vulnerável, levado por um puro instinto de amor natural.
A reportagem do Sol não me espantou, mas teve a virtude de trazer para outras páginas que não a dos manuais questões que estão a deteriorar a sociedade portuguesa e fazem parte dessa longa lista que deveria ser um outro reverso do acordo com o FMI.
Fonte: DN Opinião de Portugal
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