sexta-feira, 27 de março de 2015

Quando um All-Star fedorento me salvou do bullying

Cauê Madeira Headshot


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Arroubos juvenis somados à capacidade ócio-criativa de um garoto criado em prédio me levaram a um inusitado projeto no início da adolescência: calçar somente All-Star para o resto da vida. Por puro lifestyle. Não deu certo, já adianto.
Mas eu acreditava, e de fato estava convencido, de que algo tão confortável (?) e estiloso deveria realmente me acompanhar para sempre, como uma assinatura pessoal, assim como a gola rolê preta, calça jeans e o New Balance 993 branco de Steve Jobs. 

Possivelmente caracterizado como um dos primeiros indicativos do que poderia ser chamado de estilo próprio - uma prova para mim mesmo, naquela busca obsessiva pela auto-afirmação de todo adolescente -, eu queria encontrar uma maneira de externar minha personalidade. Mas antes disso, queria também participar de um grupo. Não queríamos todos?
Ostentar tal símbolo da contracultura (?) tinha um significado intrínseco para mim. Era como se eu participasse de uma tribo, em uma época que fazia sentido falar em tribos. Cada passo em um Converse era um passo em direção à liberdade. Se você era punk, usava. Os grunges usavam. Se fosse indie, usava também. Metaleiro pobre acabava usando porque coturno era caro demais. Cano baixo, cano longo, de couro, de lona, tanto faz, desde que fosse Converse. Meu All-Star preferido era o modelo clássico Chuck Taylor cano longo, preto.
Via os outros garotos andando com toscos tênis cinzas Reebok sem personalidade e ria por dentro. Definitivamente eu era melhor que todos eles. Nós, da turma do All-Star, éramos melhores. Eu tinha estilo. Nós tínhamos estilo.
O tênis podre no pé foi minha primeira amostra de desobediência civil leite com pêra, e talvez uma amostra de até onde a rebeldia de condomínio poderia me levar. De fato, analisando em retrospecto, esse foi um período em que apanhei menos na escola.
Eu tinha vários modelos e me orgulhava dos mais ferrados. "Esse aqui eu tenho faz três anos" e levantava como um troféu aquele resquício de lona preta fedorenta e borracha mastigada pelo asfalto com remendo de silvertape - para desgosto de vovó, que perdeu seu obediente neto para o descuido material travestido de deliquência juvenil. É inegável que seus copos de leite com Nescau nunca mais foram preparados com o mesmo capricho desde então. (podemos tirar, vó, se achar melhor)
Entre os amigos do condomínio existia uma convenção social que favorecia a prática. Quanto mais zoado seu All-Star fosse, mais legalzão você era. Aliás, legalzão mesmo era quando o pessoal assinava a borracha branca do seu tênis. Aí você era o fodão, mesmo. Se as meninas assinassem, então, você era o cara. Claro que nenhuma assinava o meu, o que me levou a tentar falsificar assinaturas. Não deu certo, e por semanas nem mesmo o mais fedorento dos All-Star me salvou do bullying (ninguém conhecia essa palavra na época), das surras e risadas. Mas eu consegui, afinal, o meu lugar ao sol. E deixei de ser o gordo-nerd-fedido que ninguém gostava para me tornar o gordo-nerd-fedido que todos achavam engraçado. Era pouco, mas era o que tinha sobrado.
E por algum motivo eu dava crédito ao meu All-Star por isso.
Hoje entendo que tudo aquilo foi muito simbólico para a construção de uma auto-estima meio prejudicada pelo azar na cadeia alimentar da selva juvenil. Só que essas modas de turma da juventude são tão rápidas quanto amor de verão (que eu não conhecia, claro, pois era virgem a contragosto), e a diferença entre quem se posiciona melhor ou pior nessa cadeia está justamente na capacidade de identificar oportunidades, ou se arriscar. Se você é daqueles que demorou tempo demais para descobrir que precisava aparar o bigodinho ou ninguém avisou que havia chegado (ou passado) a hora de usar desodorante diariamente, possivelmente você era como eu, e tinha que ficar correndo atrás do prejuízo. O segredo dos populares, além de biotipo - ser o fortinho, o bonitinho, o queridinho - era se arriscar. E eu nunca quis me arriscar muito. Só me toquei da moda do All-Star quando todo mundo já estava usando. E quando todo mundo tinha deixado de se importar tanto, eu ainda achava importante paca. Mas tudo bem. Não sei em que momento exato da vida eu desencanei do Converse, só sei que logo o All-Star podre passou a ser substituído. Vieram outros tênis, e o tal troféu caiu esquecido em algum canto.
Hoje eu não uso um Converse nem que me implorem porque continuo gordo e esse troço ferra o calcanhar, o joelho, a coluna.
É que nem Crocs, que considero uma das coisas mais medonhas que você pode colocar no pé, nunca caí naquele papo de que é muito confortável. Para mim, Crocs só agrega chulé.
Hoje em dia sou meio coxinha, uso sapatênis. Mas só para trabalhar. Para passear, prefiro o bom e velho tênis Reebok cinza com meia de algodão. Acho que a lição mais valiosa disso tudo é que aprendi a não me importar. O Reebokão pode ser feio, mas é confortável pra cacete. Minha mulher acha que eu fico com cara de tiozão. Fico mesmo. Virei o moleque de tênis tosco cinza que eu achava ridículo. Continuo gordo, continuo sendo o engraçadinho da turma. Mas não tenho problema de coluna, nem de joelho. Aliás, descobri que aqueles caras que não se tocavam que "precisavam" aparar o bigode ou que não usavam desodorante se tornaram pessoas muito mais legais do que os outros. E do que eu mesmo, que passava o dia tentando me adaptar. Talvez porque ao invés de tentar agradar os outros eles estavam mais preocupados com outros assuntos... Mas quem disse que eu quero ser o mais legal de todos?
OK, talvez eu queira só um pouquinho.
Vou contar um segredo: ainda tenho o meu Converse fedido guardado. Me avisem quando voltar à moda para que eu possa usar novamente, costumo demorar para perceber essas coisas e quando chegar à crise da meia idade vou ter medo de comprar uma moto.

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