“M – História Íntima e Secreta da Elite Argentina que Chegou ao Poder” (ed. Sudamericana), da jornalista Laura Di Marco, tenta reconstruir o contexto que levou o engenheiro e filho de um dos empresários mais ricos da Argentina, Mauricio Macri, ao poder, levando com ele parte do grupo com quem cresceu, se educou e começou na política. Trata-se de um trabalho feito às pressas, como todos os “instant books” que são lançados aos borbotões no país cada vez que um novo personagem ou fato político desponta no cenário. Não se trata do primeiro livro sobre Macri desde que se elegeu, em dezembro de 2015. Porém, é o primeiro a estar baseado em uma uma série reveladora de quatro entrevistas realizadas ao longo de 2016.
A parte mais interessante é a primeira seção do livro, que trata tanto de sua infância e do modo como se encaixou na estrutura montada pelo pai, um imigrante italiano que veio sem nada ao país e logo formou um império, o Grupo Socma, que chegou a atuar nos mais variados rubros da economia: construção, coleta de lixo, obras públicas, indústria automotriz e outros. Da infância vêm os traumas com os quais ainda convive, e sobre os quais conversa com seu psicanalista. Filho de uma família de novos ricos, Macri foi estudar no colégio Cardenal Newman, que junto ao Champagnat, a Escola Argentina Modelo e o Sworn são os mais famosos do país e frequentados por famílias aristocráticas cujas fortunas foram formadas através de gerações. Pelo perfil de milionário, porém forasteiro, Macri era molestado por seus companheiros, que lhe davam como apelido cada marca nova de produto italiano que chegava ao mercado, de massas a sapatos.
Se no colégio enfrentava essa resistência, em casa a cobrança era ainda maior. Franco Macri, o pai, sabendo da dificuldade de inserção da família na sociedade argentina por ser de fora, casou-se com uma aristocrata local, essa sim com nome de “sangue azul”, Alicia Blanco Villegas, quando ela tinha apenas 15 anos. Macri filho, porém, admite que era uma relação sem amor, e que seu pai acabaria sendo a pessoa que mais influência exerceria sobre ele e seus irmãos. Foi levado desde cedo a assistir a reuniões com executivos estrangeiros cujo idioma não entendia. Aos 20 e poucos, colocado em postos-chave de empresas do grupo, a Sideco, de construção, depois a Sevel, automotriz. Por esta época, deixou crescer um bigode, para que parecesse mais velho e pudesse ter autoridade diante de executivos de mais de 50 anos, que eram seus subordinados. Nas reuniões, porém, sempre havia uma espécie de “olheiro” do pai, que depois reportava sobre o desempenho do filho. Macri conta que não aguentava o que era “por um lado um boicote, por outro uma manifestação de amor”, conta.
O sequestro, em 1991, em que ficou preso por mais de dez dias enquanto se resolvia seu pagamento do lado de fora, foi a gota d´água. Depois de resgatado, decidiu que sairia das empresas do pai e buscaria um caminho independente, via Boca Juniors. Conta que desde cedo já pensava na presidência do Boca como antessala para a chefatura do governo da cidade de Buenos Aires, que alcançaria na sequência, e a Presidência, à qual chegaria em 2015.
O fato de ter se psicanalizado a vida toda, diz Macri, o ajuda a entender o pai, que foi contra sua candidatura e apoiou o candidato rival, peronista, nas eleições. “Como meu pai não se analisa, ele não sabe que, além da metade dele que me boicota, existe a metade dele que gosta de mim”. Em várias passagens, Di Marco tenta mostrar como muitas conquistas de Macri têm, antes de tudo, essa característica, de servir como uma demonstração ao pai de que é capaz de fazer as coisas sem ele.
Já o bullying na escola parece tê-lo ajudado de outra maneira. “Crianças são cruéis. Faziam aquilo para me molestar. Mas isso serviu para formar minha personalidade”, diz Macri. Uma de suas iniciativas foi, justamente, a de formar um grupo inseparável de amigos fiéis que estavam do seu lado na escola e nos clubes de elite que frequentava quando adolescente. Muitos o seguem até hoje em cargos do governo. Di Marco conta que, até mesmo seu chefe de gabinete, Marcos Peña, homem de sua inteira confiança, conta com um olhar e supervisão de outro dos amigos de infância de Macri que transitam pela Casa Rosada. O livro mostra que, apesar de ter tido de abrir seu leque de alianças a diversos grupos de fora do que formou o PRO (Proposta Republicana), Macri manteve figuras de confiança de longa data para vigiar cada laço e alerta-lo sobre as possibilidades de traição. Essa é uma das razões pelas quais, por exemplo, não confia em super-ministros, como era Alfonso Prat-Gay, de economia. Preferiu dividir seu cargo em dois e em escolher nomes mais subservientes e cuja atuação fosse limitada e possível de ser observada em cada detalhe.
À jornalista, Macri disse preocupar-se constantemente com os que o rodeiam: “Se o teu entorno te fecha ou te limita, você faz bobagens”, disse a ela.
Uma das coisas curiosas que conta ter feito antes de assumir foi ter ido buscar conselhos do psicanalista de Raúl Alfonsín (1927-2009), primeiro presidente em tempos de democracia, não-peronista (era da UCR), e que teve de deixar o cargo mais cedo devido a pressões e à hiperinflação dos anos 1980. “Quis conhecer o analista de Alfonsín porque sempre trato de entender quanto dano pode te causar o poder”, contou a Di Marco. Já o analista teria dito a ele que Alfonsín havia se proposto a fazer coisas demais, mas não se animou na hora de finalmente executá-las.
Di Marco também conversou com o analista do próprio Macri, que lhe transmitiu a lição que ambos procuram trabalhar, a de não estar sempre “buscando o gol de Kempes”. Trata-se de uma analogia futebolística, que se refere aos gols belíssimos desse ex-atacante da seleção campeã do mundo em 1978. O analista busca convencer Macri de que nem sempre é possível marcar esse gol, com isso querendo dizer que o melhor é delegar tarefas, esperar, não estar aflito para resolver tudo em um só dia.
Mais do que nada, a sensação geral que fica do retrato mostrado no livro é a de um político que se formou tentando proteger-se, seja do bullying escolar, da pressão dos pais e, depois, da que veio com o cargo. A libertação veio vindo com o tempo. Seus dois primeiros casamentos obedeceram a lógica familiar. Como Franco Macri, se casou com duas mulheres também de “sangue azul”. A primeira, Ivonne Bordeau, mãe de seus três filhos maiores, Agustina, Gimena e Francisco, e a segunda, Isabel Menditeguy, eram de famílias tradicionais. A atual já foge ao padrão imposto pelo pai. Apesar de também milionária, a família de Juliana Awada se assemelha mais aos Macri, por terem sido imigrantes que enriqueceram numa só geração. Com Juliana, Macri tem sua filha mais nova, Antonia.
Outro recurso para buscar sua independência sentimental foi estudar o budismo. “Comecei por conta dos ataques que recebia dos kirchneristas”, conta. E complementa: “O budismo te diz que todos os dias você tem que fazer o que precisa fazer, dar o que é preciso dar, e receber o que deve receber”.
Apesar de formar um quadro demasiado positivo do líder argentino, sem praticamente ouvir as vozes críticas a ele, “M” por enquanto é o melhor lançamento em termos de mostrar mais de perto, e de viva-voz, o personagem e de dar vida a seu entorno.
Sylvia Colombo acompanha o crescente intercâmbio cultural entre o Brasil e o resto da América Latina. No blog, traz novidades e tenta explicar o contexto político da região.
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