Uma roda de alunos com uma turma de primeiro ano na maior escola estadual de Santa Catarina. Esse foi o ambiente que escolhemos para falar sobre um tema importante e sempre atual entre a galera, mas que está ainda mais em alta desde abril, com o lançamento da polêmica série da Netflix 13 Reasons Why e, dias depois, com o “jogo da Baleia Azul”. Porém nossa intenção não é tratar sobre a série ou o jogo, mas sobre o grande tema que envolve ambos: o bullying.
“O bullying é como uma panela de pressão, às vezes você não sabe de onde iniciou o fogo, mas sabe que tem algo fervendo e aquilo vai ficando tão quente que tá prestes a explodir, e quando explode, você vê que aquilo acaba prejudicando todos que estão em volta”, falou Felipe Amendola. Ele foi um dos cerca de 30 alunos da turma 114 do Instituto Estadual de Educação (IEE) que participaram da dinâmica.
De fato, esse fogo pode começar em qualquer lugar. Um que fala diferente, um que é mais tímido, um gordo, gostos musicais e até a estampa do caderno podem ser motivo para inferiorizar um colega. No caso da aluna Gabriela de Lima, foi a religião. “Eu sou da igreja, e durante muito tempo tive que esconder isso, porque as pessoas faziam piadas ou falavam ‘não fica com ela porque ela é crente’. Só que quando me conheceram, viram que era outra mentalidade, não sou mais ‘a guria da igreja que não faz nada’, agora tá bem de boa”.
A Gabriela é uma dos 46% estudantes brasileiros entre 13 e 17 anos que dizem sofrer bullying, índice apontado por uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, com 109 mil alunos de todo o país. Ela também é uma dos 2,5% que sofrem com ofensas dos colegas com base na religião. As outras causas apontadas são a aparência do corpo (18,6%), aparência do rosto (16,2%), a cor ou etnia (6,8%), a orientação sexual (2,9%) e a região de origem (1,7%). Porém, esses números podem ser bem maiores, já que 51,3% daqueles que admitiram cometer bullying não souberam dizer o porquê.
Esses dados mostram o não questionamento por parte dos agressores e agressoras que não sabem porque fazem ou tratam tudo apenas como uma brincadeira. Essa atitude também se perpetua com a conivência de outros colegas que participam com risadas ou não falando. “Brincadeira é quando as duas partes se divertem, mas quando só uma está se divertindo é a hora para perceber que alguma coisa está errada. Então esses outros que assistem a uma brincadeira e que acham que ela pode ser divertida também precisam se perguntar: ‘quem está recebendo também está gostando?’ É aí que poderíamos ter uma reação do coletivo para auxiliar a pessoa agredida”, explica a psicóloga, pedagoga e orientadora educacional Tahiana Brittes.
Um caso que retrata a importância dessa percepção foi o do aluno do IEE Pedro Henrique da Silva. “No meu antigo colégio, a gente tinha um grupo de amigos e um deles era gay. Quando alguém de fora vinha falar dele, nós defendíamos, mas nós zoávamos ele entre a gente. Demorou um tempo até percebermos que ele também se sentia ofendido quando nós do grupo falávamos, então paramos”.
Infelizmente nem todos têm a percepção que tiveram Pedro Henrique e seus amigos. Muitos casos de ofensas viram constantes, principalmente quando a vítima não consegue reagir ou pedir ajuda. Essa repetição pode levar a um agravamento do quadro de bullying. “Muitos adolescentes chegam no consultório se perguntando o que fazer. ’Eu não consigo falar, eu não consigo ter amigos. O que eu faço? Por que todo mundo é assim comigo?’”, contou Brittes.
A ajuda está em toda parte
Não é apenas em Florianópolis que esses casos acontecem, eles estão espalhados por todo o estado. Além disso, o problema também vem de muito tempo, como conta a jornalista e escritora de Joinville Vanessa Bencz. “Fiquei incrédula de ver que as coisas ainda aconteciam como quando eu era adolescente, na época era chamado de ‘zoeira’, mas ninguém falava que tinha que combater, nós que tínhamos que aguentar, pois ‘você tem que aprender a ser forte’, como se a culpa fosse da vítima. Quando eu enxerguei com os olhos de adulta, fiquei perplexa de ver que estamos em 2017 e ainda tem gente que acha que não deve se intrometer”.
Bencz desenvolve um trabalho voltado para o público adolescente desde 2012, já palestrou em mais de 400 escolas pelo Brasil e tem três publicações relacionadas ao tema, todos com financiamento coletivo. Começou com as palestras e culminou na história em quadrinhos A Menina Distraída (2014), baseada na própria história de ofensas que sofria na adolescência. Depois veio o livro de contos reais de estudantes Leia Quando Chegar em Casa (2016), contando algumas das várias histórias que conheceu. Por fim, mais uma HQ, dessa vez com um tema ainda mais delicado e importante quanto o bullying. Por Enquanto (2017), uma parceria com a desenhista Yasmin Moraes, fala sobre automutilação.
O tema ainda é visto como tabu. Muitos adultos não gostam de tocar no assunto, mas é um problema de saúde pública que não pode ser ignorado. Uma pesquisa internacional da Associação Americana de Psiquiatria aponta que 20% dos adolescentes e adultos no mundo se cortam ou já se cortaram alguma vez na vida, mostrando que o problema é bem anterior ao jogo da Baleia Azul. “Nós, como sociedade, estamos falhando com os adolescentes. Quando eu vou nas escolas e pergunto se alguém conhece pessoas que se cortam, uns três quartos da turma levantam a mão, é muita gente. É a realidade que eu estou vendo há muitos anos”, conta Bencz.
Em casos mais graves, a depressão causada pelo bullying pode evoluir para um quadro ainda mais grave do que a automutilação. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a segunda principal causa de morte entre as pessoas de 15 a 29 anos de idade no mundo, com cerca de 788 mil pessoas mortas em 2015. Um tema delicado e que deve ser tratado de forma madura por todos os envolvidos e com muita comunicação com adolescentes.
“É uma dificuldade de colocar em palavras o que sofrem, o que não gostam, como querem ser tratadas. Por isso a terapia é importante e acaba sendo esse espaço para falar, mas a escola e as famílias também são importantes ao abrir esse espaço para fala. E não apenas de temas tão tabus como a morte e a violência, mas de coisas corriqueiras e do dia a dia, dar espaços para eles mostrarem quem são, opinarem, e isso é fundamental que seja aberto e que tenham coisas para dizer”, como conta a psicóloga Tahiana Brittes.
Foi com essa participação dos pais que surgiu o projeto “O Vento nas Escolas”. Em 2009, João Paulo perdeu um amigo de ensino médio assassinado pelo ex-namorado de uma ficante. Seus pais, o ator e cantor Bill Jonnathan e a atriz Bárbara Guerra, foram à escola, pediram um espaço para conversar com os alunos e, desde então, não pararam mais. Atualmente eles moram em Timbó e usam um site e um canal no Youtube, além de uma estrutura móvel, para suas apresentações que contam com teatro, rock e palestra, tudo junto e misturado em aproximadamente duas horas de espetáculo.
De forma interativa, a família conta sua experiência. Jonnathan já foi usuário de drogas. Bárbara sofreu abuso na infância. Histórias que são tratadas de forma tragicômica – como diz o próprio ator – e ajudam o público infantil e adolescente a se abrir. “Problemas nós sempre vamos ter, a vida é superar problemas e se superar todos os dias, a questão é como nós suportamos isso: será que nós dividimos ou somatizamos isso? Somatizar é um grande engano, precisamos externar e compartilhar para que o outro possa nos ouvir e auxiliar”.
E o papel da escola?
Assim como os pais, a escola também tem participação na prevenção ao bullying. As palestras da Vanessa Bencz e os shows do Bill Jonnathan são necessários, mas é no dia a dia que o combate se faz importante. A escola é o ambiente social diário do adolescente e, muitas vezes, onde o jovem consegue se expressar de forma mais genuína. “Não podemos perder de vista esse compromisso que a escola tem de socializar, de auxiliar crianças e jovens a lidar com as diferenças e trazer à tona para que essas características possam ser ditas e aceitas”, comenta Tahiana Brittes.
Um dos papéis da escola, nesse caso, é intermediar a relação com os pais e encaminhar pedidos de ajuda. Porém, mesmo sentindo-se mais seguros nesse ambiente, a relação nem sempre é a ideal com coordenadores e professores, como conta Vitória Gonçalves, aluna da turma 114. “Eu estava abraçada com uma amiga minha no recreio e essa pessoa falou para eu ir para a direção, só que do meu lado estava um casal de amigos hétero se beijando e ela não fez nada. Eu fiquei chocada, pois não basta a sociedade te julgar ou sofrer bullying dos colegas, a gente sofre também de professores e coordenadores que era quem deveria apoiar quando isso acontece”.
Nas várias palestras que já fez no estado, Vanessa Bencz também relata problemas com a postura de educadores que preferem negar o problema em vez de tentar resolvê-lo. “Tem muito professor que ainda me fala que ‘bullying não existe’ ou que ‘bullying fortalece caráter’. Ouvi de uma coordenadora uma vez: ‘olha Vanessa, a pessoa que sofre bullying ela escolheu sofrer’. Não! A culpa não é da vítima, é do agressor, ele tem que aprender valores como respeito e empatia”, conta a escritora.
Como vimos, o problema não é de uma instituição e são problemas com os quais a escola também tem que saber lidar. Para atender esse e outros problemas relacionados, a rede de ensino de Santa Catarina conta com o Núcleo de Educação e Prevenção (Nepre), uma política pública presente em várias escolas do estado. A coordenadora do Nepre no Instituto Estadual de Educação, Jaqueline Santos Duarte, informa que o órgão conta com uma rede de parceiros interna e externa, intermediando conflitos dentro e fora da escola para garantir os direitos das crianças e adolescentes. De problemas de presença dos alunos até violências sexuais.
No caso dos conflitos entre alunos e professores, a coordenadora coloca que é algo que é trabalhado com os educadores. “Eu sempre coloco aos alunos que nós, profissionais da educação, não estamos aqui para personalizar nossas ações, e sim a questão ética do nosso trabalho. Existe uma legislação que trata dos direitos e deveres dos alunos e é importante que os professores tenham consciência disso. É uma das maiores dificuldades que temos por conta de sociedade conservadora e preconceituosa, e mesmo no ambiente escolar, que é onde temos que adquirir esse conhecimento, existem grandes resistências”.
Assim como em todas as relações, os problemas existem, mas a escola ainda é um dos espaços com mais liberdade para os adolescentes, como conta Laura Ribeiro dos Santos, presidente do Grêmio e aluna da 114. “A gente tem dois ambientes: a casa e a escola. Em casa, muitos pais são conservadores e não deixam falar nada, porque é drama ou não te aceitam como você é. Comparar esse lugar com a escola, onde temos mais de 80 professores, plantão pedagógico e o Nepre... temos bastante espaço para falar”.
Converse com alguém
A escola pode ser um ambiente opressor, mas também é um ambiente de segurança para muitos, afinal, é lá onde está aquele professor ou coordenador massa com quem a gente pode conversar. Além disso, a presença dos amigos nesse é fundamental, seja para pedir ajuda, seja para ajudar, como no caso da aluna do IEE Alícia Silveira. “Eu me envolvo bastante com os amigos e consigo perceber pelo tom de voz que tem alguma coisa, e dos mais próximos, pelo olhar, também a gente percebe que tem alguma coisa que tá errada”.
E é nessa percepção que construímos nossas relações e nos sentimos cada vez mais pertencentes ao mundo. Então ajude alguém próximo, converse. Peça ajuda, ofereça ajuda. Afinal, como falou Vanessa Bencz, o mundo também é seu. “As pessoas dizem muito que a gente vive no mundo dos fortes, mas o que é ser forte? É agredir, é humilhar? A gente precisa urgentemente renovar a ideia do que é ser forte, para mim é ser sensível, é ouvir, se importar com as pessoas, ter coragem de pedir ajuda. Então vamos fazer uma reflexão, pois o mundo seu também é dos sensíveis, dos faladores, dos quietinhos, dos estranhos, dos gays, dos héteros, é de todo mundo”.
13 verdades sobre o bullying no Brasil*
- 46% dos alunos brasileiros entre 13 e 17 anos já sofreram bullying.
- A cada turma de 25 alunos, 2 (8%) se sentem humilhados com frequência.
- 35% dos alunos admitiam sofrer bullying em 2012. Esse número subiu para 46% em 2015.
- A cada turma de 25 alunos, 5 (20%) admitem praticar bullying.
- Mais da metade dos estudantes (51%) que praticam bullying não sabem porque o fazem.
- 18,6% dos que admitiram são por causa da aparência do corpo.
- 16,2% dos que admitiram são por causa da aparência do rosto.
- 6,8% dos que admitiram são por causa da cor/etnia.
- 2,9% dos que admitiram são por causa da orientação sexual.
- 2,5% dos que admitiram são por causa da religião.
- 1,7% dos que admitiram são por causa da região de origem.
- 1 a cada 4 meninos participa (comete ou sofre) de casos de bullying.
- 1 a cada 6 meninas participa (comete ou sofre) de casos de bullying.
* Dados do IBGE de 2015
Por Lucas Inácio
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