Uma caldense licenciada em Psicologia Social elaborou uma dissertação sobre a atitude das pessoas quando confrontadas com alguém a precisar de socorro, concluindo que a omissão de auxílio ainda é um comportamento com grande expressividade no quotidiano. Cerca de 30% dos participantes no estudo manifestou a probabilidade de incorrer neste crime, punido no Código Penal Português.
Este estudo, realizado no âmbito da Pós-Graduação em Psicologia Criminal e Formação em Cidadania, no Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA), analisou a importância da percepção das situações e das atitudes altruístas como determinantes da intenção de ajuda, a fim de evitar que os cidadãos incorram no crime de omissão de auxílio.
Vanessa Gomes Pedro, 27 anos, licenciada em Psicologia Social e das Organizações pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), é a autora da dissertação que intitulou “O pior cego é aquele que não quer ver – atitudes e perspectivas de adopção de comportamento de ajuda”, sob coordenação da psicóloga criminal Joana Almeida. Do corpo docente da pós-graduação fazem ainda parte Sónia Ferreira (psicóloga social e mestre em psicologia legal), o subintendente Rafael Marques, comandante da Divisão da PSP de Cascais, e Manuel Santos, subcomissário da PSP de Pombal. Na escala de 0 a 20, a nota final obtida neste trabalho foi 19, valor com que também concluiu a pós-graduação.
Trinta utentes da biblioteca municipal das Caldas da Rainha responderam a um questionário e uma escala de atitudes altruístas. Considerando enquanto hipóteses, a influência da percepção da situação, do altruísmo, da idade e género, ponderou-se, ainda, sobre as competências e experiências passadas, enquanto factores relevantes no comportamento de auxílio em situações de emergência.
Foi pedida a cada pessoa a sua participação voluntária no estudo, que lhes foi apresentado como um meio para estudar as relações interpessoais. As idades variaram entre os 11 e os 86 anos, sendo a média foi de 31 anos.
Através de duas questões acerca de uma imagem em que um indivíduo agredia outro, perante a passividade de um terceiro, que ficava com as mãos nos bolsos, avaliou-se o que a mesma representava para elas, isto é, se concebiam a situação enquanto emergência e como agiriam se fossem o personagem identificado (o espectador).
As variáveis como a idade, o género e a constituição física foram medidas através de uma ficha de dados biográficos que aferia, ainda, entre outras questões, se os participantes já tinham vivido alguma situação de emergência e em que papel: vítima, agressor, observador ou enquanto “bom samaritano”.
Analisando as respostas à questão “O que representa a presente imagem para si?”, verificou-se, antes de mais, que a mesma foi correctamente percebida pelas pessoas, que a conceberam como violência (32,10%), agressão (25%), maltrato (10,70%) e bullying (10,70%). No que respeita aos comportamentos que reportaram adoptar se fossem a personagem que consta na imagem com as mãos nos bolsos, constatou-se que a intenção mais frequente seria a de afastar os indivíduos (15,4%) e chamar a Polícia de Segurança Pública (15,4%).
Embora a maior parte tenha facilmente interpretado a situação representada na imagem, os que expressaram alguma confusão, acabaram por afirmar que, caso fossem o observador que consta na imagem, adoptariam outros comportamentos mais próximos da omissão de auxílio.
Relativamente à preponderância da idade no comportamento de ajuda, foram os mais novos que se traduziram nos indivíduos com maior intenção de auxiliar a vítima da imagem, caso a presenciassem na realidade. O altruísmo deve aumentar com a idade. Todavia, se por um lado existe um desenvolvimento do sentido de responsabilidade e da moralidade, por outro, o aumento da inibição social não deixa de ocorrer.
Não só foram as mulheres que mais expressaram a intenção de ajuda, como na análise das respostas os homens reportaram mais respostas classificadas como omissão de auxílio. Contudo, ainda que tenham relatado menor intenção de ajudar, os homens, quando o fizeram, caracterizaram o seu comportamento como ajuda directa (sem recorrerem a terceiros, como pedindo socorro), respondendo nesta categoria em maior número que o sexo oposto.
Ainda que o género feminino possa ser tendencialmente e ao nível verbal mais altruísta, no que respeita aos homens, é possível considerá-los mais altruístas se a dimensão em estudo se tratar da assistência na sua forma física, o que acontece em situações de emergência.
O comportamento de ajuda aumenta no mesmo sentido do altruísmo. Logo, quem manifestar mais atitudes desta natureza, tenderá a evitar o crime de omissão de auxílio. De entre os factores em análise, os que tiveram maior expressão na definição do altruísmo foram os itens “Acho que é importante respeitar os sentimentos dos outros”, “Cuidar de alguém, sem estar à espera de recompensa”, “Prestar assistência à família e amigos, sem esperar algo em troca” e “Ajudar uma instituição, mesmo sem esta o ter pedido”.
Os participantes que revelam maior intenção de ajuda são os que apresentam uma constituição física saudável, aumentando o comportamento de ajuda com a existência de constituição física saudável, prática de desporto e treino físico específico.
O comportamento de ajuda também aumenta em função das experiências de vida desta natureza. Em resposta à questão “Algum membro da sua família foi vítima de alguma situação de emergência?”, 37% dos participantes afirma que algum membro da sua família foi vítima de uma situação de emergência. Quanto à questão “Já viveu alguma situação de emergência?”, verificou-se que 44,4% dos sujeitos responderam afirmativamente e só um, não especificou a natureza da mesma. Os restantes participantes referiram o traumatismo como a situação de emergência mais vivida. Em relação ao papel desempenhado, ou seja, o comportamento adoptado face à situação vivida, os participantes, que indicaram ter assumido o papel de vítima (62,5%) e de “bom samaritano” (37,5%).
Os resultados indicam que a interpretação da situação e o género podem conduzir a diferentes respostas comportamentais, e que as atitudes altruístas, a constituição física, a prática de desporto, o treino físico específico e as experiências de vida, influenciam de forma positiva, a intenção de adopção de comportamento de ajuda.
“A sociedade de hoje é cada vez mais globalizada e o crime configura-se à sua mercê e das particularidades de cada indivíduo, das suas necessidades e patologias. A mobilidade social tornou-se um impeditivo da aquisição de valores convencionais associados à ordem, acentuando o processo de perda de sentido de pertença e de afectividade. Como tal, perante situações de emergência, onde é possível o risco de vitimização, pode verificar-se a falta de adopção de um comportamento de ajuda que socorra quem precise”, refere Vanessa Pedro.
“Compreender porque não ajudam os espectadores em situações de emergência, assume-se como objectivo primordial deste estudo. De acordo com a literatura acerca do comportamento de ajuda, muitos podem ser os motivos. De um modo geral, uma vítima terá mais probabilidades de ser ajudada directamente pelo observador, ou indirectamente através de um pedido de ajuda a quem este considere que possa intervir com sucesso, quanto menor for o número de pessoas presentes. No entanto, a omissão de auxílio não se cinge à influência da quantidade de observadores, mas também, à percepção da situação por parte destes e às suas atitudes altruístas. Assim, considerando a preponderância de outros determinantes do comportamento de ajuda, qualquer espectador poderá mais facilmente saber como não incorrer no crime de omissão de auxílio mas, essencialmente, actuar na prestação de auxílio a outrem”, descreve.
A licenciada faz notar que, segundo o Código Penal, “quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, e se a situação tiver sido criada pelo próprio, incorre a uma pena de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias”.
A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando houver outro motivo relevante.
“As diferentes tentativas para explicar o fenómeno do crime de omissão de auxílio constituem um passo no sentido de investigar mais sobre esta problemática. De facto, cada situação será única, quanto mais não seja pela personalidade de cada interveniente. O ser humano é sempre subjectivo na interacção entre o que as circunstâncias dele exigem e a sua predisposição pessoal para fazer face às mesmas. Dificilmente sabemos como agiremos, até nos depararmos com a situação e a necessidade de agir”, conclui.
Francisco Gomes
Fonte: Jornal das Caldas
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