terça-feira, 14 de agosto de 2012

BULLYNG E RESILIÊNCIA

BULLYNG E RESILIÊNCIA
Ana Júlia Vicentini e Evandro de Quadros Cherer

ResumoEste artigo propõe-se a uma reflexão teórica acerca dos entrelaçamentos das concepções de bullying e resiliência. Para isso utilizou-se do método indutivo de pesquisa e de estudos teóricos que apontam que a sociedade em que nos encontramos tem passado por uma inversão de valores: o esquecimento dos referenciais e dos papéis. Isto contribui para que vários fatores se entrelacem propiciando a eclosão da violência nas escolas, em especial o bullying. Entende-se que a resiliência se aplica ao fenômeno de que algumas pessoas são capazes de se defender de situações como o bullying, sendo possível um trabalho em conjunto para que a resiliência seja desenvolvida, tanto individual quanto globalmente, formando toda uma sociedade mais resiliente.

Palavras-chave: bullying; resiliência; sociedade.

Introdução
A distribuição social do conhecimento que possibilita a interiorização de submundos baseados em instituições (BERGER; LUCKMANN, 2009) ocorre durante a socialização secundária, na qual a escola tem um  papel essencial. Nela, as pessoas aprendem conteúdos intelectuais e a convivência social, durante um período que abrange aproximadamente 12 anos da vida do sujeito. Ao longo desses anos, a adolescência é uma fase do desenvolvimento em que o indivíduo pode estar sujeito a uma maior vulnerabilidade, pois compreende uma etapa na qual se sucedem diversas alterações físicas e psicológicas. Durante essa fase , o sujeito vai adquirindo maior independência, dando maior valor aos pares e explorando circunstâncias novas. Nesse contexto, se ressalta a relevância de se prever fatores de risco, compreendendo-os não como determinadores de um prognóstico ruim, mas, sobretudo, como sinalizadores de necessidade de intervenção (SAPIENZA, 2005). Dentre os fatores de risco destaca-se a violência escolar, expressão essa que concerne a todas as condutas agressivas e anti-sociais, assim como os conflitos interpessoais e atos infracionais ocorridos na escola. Sendo assim, constata-se que se trata de uma rede de problemas, interligada inclusive com fatores externos (ARAMIS, 2005).
 
Uma das formas de violência na escola que tem sido notavelmente alarmante é o bullying, que se trata de um modo de afirmação de poder interpessoal através da agressão. A vitimização ocorre através de uma conduta agressiva por uma pessoa mais poderosa do que a vítima. Este comportamento abrange todas as atitudes hostis, propositadas e repetidas, que acontecem sem intenção manifesta, seguidas por um ou mais estudantes. Atualmente há ainda desdobramentos dessas atitudes, como o cyberbullying, realizado através da internet (ARAMIS, 2005).
 
Corroborando com isso, Martins (2005), demarca três grandes grupos de bullying, a saber, atos diretos e físicos, atos diretos e verbais e atos indiretos. Dentro do primeiro grupo, estão as agressões físicas, os roubos ou danos a objetos dos colegas, a extorsão de dinheiro, os comportamentos sexuais forçados, a realização de atividades servis forçadas ou ainda a ameaça desses comportamentos. Os atos diretos e verbais são os insultos, apelidos, comentários racistas ou sobre qualquer diferença no outro. Já a agressão indireta é a exclusão de um colega, fazer fofocas sobre este ou ameaçar excluir do grupo para obter algum favorecimento, isto é, de forma geral, manipular a vida social da vítima do bullying (MARTINS, 2005).
 
Segundo Caliman (2006), os estudantes identificados como agentes são entendidos como “hostis-agressivos”, “passivos-agressivos”, e “provocadores”. O comportamento deles é designado pela prepotência com os colegas, logo, é caracterizado por condutas de se colocar em conflito, se exaltando facilmente através de ameaças, empurrões, etc. Por outro lado, a agressividade em sentido passivo conduz a uma reação hostil marcada pela rebelião (CALIMAN, 2006).
 
O bullying é quatro vezes mais praticado por meninos do que por meninas. Já quanto ao papel de vítima, não há distinções entre gêneros, sendo que comumente esse sujeito não dispõe de status, recursos ou aptidão para reagir ou interromper o bullying (ARAMIS, 2005). 

Freqüentemente as vítimas ou alvos do bullying são pessoas pouco sociáveis, inseguras, com baixa auto-estima e que não reagem ao ataque sofrido. Francisco e Libório (2008) citam pesquisa realizada por Fante (2005), na qual se observa maior incidência de bullying na faixa etária entre os 10 e os 15 anos de idade, isto é, aproximadamente entre a quinta e a oitava séries do ensino fundamental (FRANCISCO; LIBÓRIO, 2008).
 
Muitas vezes, infelizmente, condutas entendidas como bullying são tradicionalmente aceitas como naturais. Desse modo, tal prática pode ser rotineiramente ignorada ou desvalorizada por professores, assim como pelos pais (ARAMIS, 2005). Apesar disso, a maioria dos alunos pensa em pedir ajuda aos professores para resolver o problema que estão passando com o bullying, pois consideram que eles se preocupam com isso, ainda que muitos desses profissionais não saibam como ou não estejam preparados para intervir. Dessa maneira, o fenômeno do bullying permanece oculto na maioria das vezes e, assim, mostra apenas um fraco reflexo de nossa realidade, enquanto a maior extensão do problema permanece encoberta (FRANCISCO; LIBÓRIO, 2008).

MétodoNeste trabalho, de caráter reflexivo, se pretende desenvolver algumas considerações sobre o fenômeno bullying e sua relação com o conceito de resiliência. Para tanto, utilizar-se-á o método indutivo de pesquisa, através do qual a generalização de ideias deriva da observação de casos particulares da realidade concreta. O embasamento teórico advém do estudo de fontes bibliográficas.

Bullying e Escola: Reflexo da sociedadeEntende-se que a escola é um reflexo da sociedade em que está inserida, e, desse modo, também se insere no sistema enquanto subsistema que espelha e desenvolve a cultura (CALIMAN, 2006). Sendo assim, se pode compreender que os problemas enfrentados na escola são reproduções do contexto em que essa se insere, portanto, a problemática do bullying, bem como tantos outros conflitos escolares, é atravessada por questões que se remetem a problemas sociais. Nesse sentido Fridman (1999) relembra a expressão de Baudrillard (1997) “hiper-realidade” como uma forma de descrever a configuração de nossa sociedade atualmente, a qual é composta por uma coleção de cópias cujos originais foram perdidos, isto é, uma sociedade composta por homens sem referencial e onde tudo é incorporado ao universo das mercadorias (FRIDMAN,1999). A falta de referencial se remete ao desamparo das vítimas de bullying que, quando recorrem aos profissionais da escola, podem verificar que estes têm dificuldade em ajudá-los. (FRANCISCO; LIBÓRIO, 2008). Todavia, evidencia-se que muitas vezes não se trata de descaso, mas da falta de referenciais, falta de informações e de recursos, tanto advindos da formação profissional quanto do próprio contexto social.
 
Compreende-se que os adolescentes violentos muitas vezes são pessoas desamparadas, pois o conflito, inerente à fase em que se encontram, deve encontrar apoio provindo dos adultos. Apoiar não significa concordar ou incentivar, pelo contrário, suportar e confrontar, resistir à destrutividade. Os adultos devem cumprir esse papel, servindo de referência para que a as pulsões agressivas sejam canalizadas e dominadas. Porém, se os adultos falham nessa tarefa, o adolescente não consegue orientar sua violência interna na busca por uma identidade. Nesse sentido, esses adultos despreparados, como se ainda estivessem em sua própria adolescência, podem estar também abandonados pela sociedade, sem referências (MARTY, 2006).


Bullying e Resiliência: transformando a dor em uma possibilidade de crescimento 
Há muito tempo o conceito de resiliência é utilizado pela Física e pela Engenharia, se referindo à capacidade de um material absorver energia sem deformar-se plástica ou permanentemente, isto é, retornar à forma original após uma deformação. Todavia, em Psicologia, o estudo da resiliência é recente, ocorrendo nos últimos trinta anos. Em última análise, esse conceito pode ser significado como a “habilidade de superar as adversidades” (YUNES, 2003). Esse novo campo de investigação foca os recursos, as fontes de saúde e os processos motivadores da adaptação positiva das pessoas em situações adversas (SILVEIRA; MAHFOUD, 2008). Entretanto, resiliência não se trata de um escudo, mas da possibilidade de flexibilidade interna, que faria com que fosse possível aos indivíduos agirem com sucesso, transformando-se de forma adaptativa frente aos conflitos. Isto quer dizer que não seria uma defesa rígida, mas uma forma de manejo das circunstâncias adversas internas e externas (PINHEIRO, 2004).
 
Os termos invulnerabilidade ou invencibilidade são os precursores do termo resiliência na Psicologia. No entanto, o conceito de invulnerabilidade aparenta ser intrínseco ao sujeito, enquanto que a resiliência possui suas bases constitucionais no ambiente, oscilando conforme as circunstâncias (YUNES, 2003). Isto é, não se trataria de algo fixo ou um traço da personalidade, mas algo que se constrói nas relações (humanas) do sujeito com a sociedade, não sendo individual nem social. Diante disso, é possível afirmar que uma pessoa resiliente é aquele que recebe algum tipo de apoio de outra pessoa ou de uma rede de apoio. Além do mais, influências que possibilitem o indivíduo se proteger durante situações difíceis poderiam ser introduzidas em qualquer parte do ecossistema humano, a saber, família, indivíduo, comunidade ou sociedade. Desse modo, a resiliência pode ser aprendida e desenvolvida por qualquer pessoa (SILVEIRA; MAHFOUD, 2008).
 
Entre os fatores estruturantes da resiliência se encontram as condições individuais como a auto-estima, senso de humor e autonomia. Nas condições familiares se ressalta o apoio emocional, sendo este o sentimento de ser amado e aceito pelo seu grupo familiar. As práticas disciplinares se revelam importantes, ocorrendo através da orientação e do cuidado dos pais dirigidos aos filhos. No tocante às redes de apoio ambientais, se considera a importância de um ambiente tolerante aos conflitos. Com isso, entende-se que a qualidade das relações possui grande relevância (PINHEIRO, 2004).
 
Silveira e Mahfoud (2008) discorrem sobre as contribuições ao conceito de resiliência do psiquiatra Viktor Frankl, o qual tendo sobrevivido a quatro campos de concentração durante a Segunda Guerra, pode ser considerado uma pessoa altamente resiliente. Para Frankl, todo o ser humano tem possibilidades de assumir uma atitude diante das coisas que lhe acontecem, diante dos sofrimentos, condicionamentos e facticidades. Ele relata que, nos campos de concentração, a sobrevivência dependia da capacidade de orientar a própria vida a algum sentido, algum motivo ou alguém, isto é, a auto-realização ocorre quando a pessoa esquece de si mesmo e busca dedicação a outras pessoas ou coisas no mundo exterior. Dessa forma, para Frankl, o sentido da resiliência é a busca de sentido da vida, que acaba produzindo criatividade, aprendizado, superação e crescimento.
 
Como a resiliência é algo que pode ser aprendido, que depende da operacionalização das conseqüências de se encontrar um sentido para a vida e que só é possível através do olhar para o mundo externo, então, para ser resiliente, como já dito, é muito importante que se receba suporte, apoio e confiança de outros (SILVEIRA; MAHFOUD, 2008), em formas de apego seguro (BOWLBY, 1989) de pessoas ou até mesmo instituições. Isso só é viável através de uma continuidade entre as gerações, pois são aspectos transmitidos de uma geração para outra (PINHEIRO, 2004). Os ensinamentos sobre o sentido da vida, sobre olhar para o mundo externo e para o outro, as atitudes de apoio e confiança que revelam apego seguro, o sistema de crenças pessoais e familiares, assim como dar sentido às crises e dificuldades (considerá-las como desafios significativos, compreensíveis e manejáveis) entre outras, podem ser passados de pais para filhos. Além disso, uma pessoa que sabe, desde pequena, que será aceita incondicionalmente pelas pessoas que lhe são importantes, certamente enfrentará melhor os infortúnios da vida. Frankl defende que a resiliência é algo que se constrói em cada escolha, a cada momento, pois  as experiências vividas de forma positiva não podem ser mudadas na história de uma pessoa (SILVEIRA E MAHFOUD, 2008).


Considerações finaisA violência na escola não é algo novo, mas, mesmo assim, surpreendentemente, a maioria dos profissionais inseridos no contexto escolar não consegue lidar com ela. Enquanto não se sabe o que fazer com os alunos envolvidos na dinâmica do bullying, alguns comportamentos acabam sendo reforçados, tanto do agressor quanto da vítima. O agressor segue numa tentativa, talvez, de derrubar o outro com o objetivo de convocá-lo a existir para que, assim, ele mesmo exista e não caia, adquirindo contorno (MARTY, 2006). A vítima segue sem saber como lidar com a situação, se esquivando, fugindo das relações sociais, perdendo sua auto-estima. Os adultos ao redor testemunham tudo, impotentes, tentando soluções imediatas como punir ou trocar a criança de escola.
 
Diante dos casos de bullying, especialmente os relatados pela mídia, as pessoas se perguntam por que  eles têm se tornado tão freqüentes. Perante o exposto anteriormente, a reflexão se foca no estado atual da sociedade e da cultura a ela atrelada, na qual filhos crescem sem a presença dos pais, relações se tornam descartáveis e superficiaise pais, crianças grandes e sem referenciais, se mostram incontinentes. Os casos de morte por bullying são foco de atenção da mídia, mas com sentido de espetacularização, dificilmente se propondo ao diálogo.
 
Uma sociedade mais resiliente, que propõe sentido para a vida e, assim, também para as situações difíceis, seria uma sociedade que dá mais valor ao ser humano. Dessa maneira, pessoas com mais consciência do outro e do coletivo criariam filhos mais seguros, que não precisariam usar da violência para se contornar, sabendo contornar também as adversidades, usando elas a seu favor, sem que isso afetasse negativamente quem são.
 
A mudança só é possível através do questionamento constante de nossos valores atuais, com a criação de oportunidades para discussões em todos os âmbitos sociais, especialmente na escola, onde o bullying é mais visível e freqüente. Para tanto, é necessário que isso também ocorra na formação dos profissionais da escola . A escola, por ser a base de instrução social, possui grande alcance, sendo, às vezes, o núcleo da comunidade. Se a escola produzir espaços para reflexão e discussão, podendo incluir até treinamento de pais, as crianças nela inseridas e as famílias que se envolverem serão novos transmissores das ideias transformadoras. Assim como pais também podem instruir, a escola também pode educar.

Bibliografia
Referências
ANTUNES, D.C.; ZUIN, A.A.S. Do bullying ao preconceito: Os desafios da barbárie à educação. Psicologia & Sociedade; V.20, n.1, 16-32, 2008.
ARAMIS A. L. N. Bullying - comportamento agressivo entre estudantes. Jornal de Pediatria, V.81, n 5, 2005.
BERGER, P.L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 2009.
BOWLBY, J. Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego. Porto Alegre: Artes Médicas,1989.
CALIMAN, G. Estudantes em situação de risco e prevenção. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro,V.14,n. 52, 383-396, 2006.
FRANCISCO, M.V.; LIBÓRIO, R.M.C. Um Estudo sobre Bullying entre Escolares do Ensino Fundamental. Psicologia: Reflexão e Crítica, V.22, n.2, 200-207, 2008.
FRIDMAN, L. C. Pós-modernidade: sociedade da imagem e sociedade do conhecimento. História, ciência e saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro; V.6, n.2, 1999.
MARTINS, M. J. D. O problema da violência escolar: Uma clarificação e diferenciação de vários conceitos relacionados. Revista Portuguesa de Educação, V.18, n.1, p.93-105, 2005.
MARTY, F. Adolescência, violência e sociedade. Agora, Rio de Janeiro, V.9, n.1, 119-131, 2006.
PINHEIRO, D.P.N. A resiliência em discussão. Psicologia em Estudo, Maringá, V.9, n.1, p. 67-75, 2004.
SANFELICE, J.L. Pós-modernidade, ética e educação. Educação & Sociedade, V.22, n.76, p. 297-303, 2001.
SAPIENZA, G.; PEDROMÔNICO, M.R.M. Risco, proteção e resiliência no desenvolvimento da criança e do adolescente. Psicologia em Estudo, Maringá, V.10, n.2, p. 209-216, 2005.
SILVEIRA, D.R. & MAHFOUD, M. Contribuições de Viktor Emil Frankl ao conceito de resiliência. Estudos de Psicologia, Campinas, V.25, n.4, p. 567-576, 2008.
YUNES, M. A. M. Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia Em Estudo, Maringá, V.8 (Num. Esp.), 75-84, 2003.


Currículo(s) do(s) autor(es)
Ana Júlia Vicentini e Evandro de Quadros Cherer - (clique no nome para enviar um e-mail ao autor) - Ana Júlia Vicentini: Psicóloga (UFSM)
Evandro de Quadros Cherer: Psicólogo (UFSM). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS. quadroscherer@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário