sábado, 8 de outubro de 2016

‘Audrie & Daisy’: documentário explora males sociais após estupro de adolescentes

Por Susy Freitas · 

Com “Audrie & Daisy” (2016), a diretora Bonni Cohen uniu forças com o diretor Jon Shenk e apresentou um retrato aterrador de duas adolescentes vítimas de abuso sexual após o acontecido ao longo de vários anos. Aterrador, e por isso mesmo, necessário.

Cohen e Shenk são bem sucedidos em ambientar o espectador no universo dos casos: para os mais jovens, criam um quadro no qual se consegue identificar facilmente como moças e rapazes são treinados socialmente para, por um lado, ser permissivo com eles, e, por outro, punitivo com elas no que diz respeito ao sexo. Aos mais velhos, consegue mostrar como as interações dentro do microcosmo de um adolescente podem ser impactantes a uma vítima de abuso, dimensionando os motivos para que não apenas a agressão que sofreram, mas o julgamento social machucarem tanto.

É isso que vemos no caso que abre o documentário, o de Audrie Potts. A menina de 15 anos cometeu suicídio após ser abusada sexualmente por colegas da mesma faixa etária em uma festa. Os rapazes viram Audrie desmaiada por conta do alto consumo de bebida alcóolica e decidiram escrever obscenidades em seu corpo, despido por eles. Em seguida, o relato dá conta de que teriam inserido um dos pincéis usados na vagina da adolescente, e que parte do crime foi registrada em vídeo com um celular. As imagens foram, posteriormente, compartilhadas entre os colegas da escola em que todos eles estudavam. A jovem se suicidou uma semana depois.

De maneira não muito harmoniosa, o documentário navega para a história ainda mais chocante de Daisy Coleman. Aos 14 anos, ela foi induzida a consumir uma quantidade absurda de bebida alcóolica por colegas do irmão mais velho para então ser estuprada. Quando os jovens a abandonaram no jardim da casa da menina, ela estava próxima de um coma. A reação dos moradores e autoridades policiais da pequena cidade de Maryville ao caso foi tão ruim quanto o crime em si: um dos agressores pertencia a uma família tradicional do local e, alegadamente, isso influenciou para que o caso não fosse investigado a contento. Não apenas a escola, mas a cidade inteira se voltou contra Daisy e sua família, e quando o caso ganhou projeção nacional, a casa da jovem foi incendiada.

As duas histórias foco do documentário são entrecortadas de forma muitas vezes confusa, por outras histórias similares e que não chegam a ser plenamente desenvolvidas. Nesse sentido, “Audrie & Daisy” apresenta um formato menos envolvente que outra recente obra que retrata questões de abuso sexual, “The Hunting Ground”. Ainda assim, o fato de focar na discrepância das consequências desses crimes na vida tanto das moças quanto dos rapazes envolvidos faz com que o filme ganhe uma perspectiva digna de atenção. Os agressores de Audrie, por exemplo, tiveram uma punição mais que branda pelas vias criminais, sendo o processo civil que os pais da jovem moveram posteriormente o que fez com que eles tivessem que se expor e pedir desculpas perante a sociedade. Foi o resultado desse processo também o que permitiu com que os depoimentos deles surgissem no documentário, como parte do acordo.

Isso é aproveitado de forma criativa por Cohen e Shenk, que fazem uso da animação para mostrar os depoimentos desses rapazes. Esteticamente, cria-se uma camada adicional de choque a essas falas, pois temos as vozes dos jovens e a intensificação da linguagem corporal deles enquanto recontam a história através da animação. Outras estratégias que frisam o enfoque no bullying sofrido pelas vítimas de abuso sexual também surgem no plano visual quando os diretores fazem a escolha de, por exemplo, apresentar uma longa cena de vista aérea das casas de Maryville, atrelando a cada residência um tweet com mensagens agressivas contra Daisy.

O virtual é real

Essa fronteira, ou melhor, a fluidez da fronteira entre o virtual e o mundo (apenas aparentemente) off-line é outro ponto caro a “Audrie & Daisy”. Na vida das sobreviventes de abuso, as mensagens anônimas, o compartilhamento dos vídeos de suas agressões, os tweets e perfis fakes as atacando foram tão reais quanto o crime em si, pois o que acontece “dentro” de seus computadores e smartphones são parte importante da experiência de ser um adolescente hoje. Não por acaso, essa camada de vivência jovem é comumente um mistério aos pais, que não raro não fazem ideia do que está acontecendo até que seja tarde demais.

É o que vemos nos depoimentos dos pais de Audrie. Foi apenas após o contato da mãe com as agora póstumas redes socais da menina que a ajudaram a entender o motivo dela ter se suicidado, quando ela pôde ver que a jovem realizou uma verdadeira investigação online para saber quem a levou para um quarto quando desmaiou durante a festa, por que colegas conhecidos a despiriam e escreveriam mensagens obscenas em seu corpo, registrando tudo em vídeo e compartilhando o que tecnicamente seria pornografia infantil com toda uma comunidade de jovens.

Vê-se com isso outro aspecto da tal fluidez da fronteira entre o “virtual” e o “real”. Assim como os rapazes agressores não reconheceram no abuso a quebra de um contrato social simbólico (o da confiança do jovem com o jovem, da adolescente para com seus pretensos iguais adolescentes), eles também não perceberam o peso do registro em vídeo, acreditando que o compartilhamento das imagens seria tão banal quando repassar um meme a um colega via Facebook Messenger.

Com exceção do uso eventual de animação e alguns outros discretos usos criativos de elementos escritos que surgem na tela, o choque maior de “Audrie & Daisy” fica por conta dos relatos em si. Basta ordenar os talking heads, tão tradicionais na linguagem do documentário, para contarem a história. Sem nunca adentrar em discussões feministas e usar os termos a elas comumente atrelados, a mensagem de alerta quanto à construção social dos papeis feminino e masculino reverbera por todo o filme e nos diz o quanto meninas não têm os mesmos privilégios que meninos, e que, por sua vez, não são punidas da mesma forma que eles. A culpabilização das vítimas, o privilégio dado aos agressores pela lei e a própria noção que tantos garotos achem normal estuprar uma garota inconsciente é algo que fala por si, sem demandar tanto do documentário algo além do modo expositivo.

“Gente de bem”

Prova disso é quanto o documentário se volta à história de Daisy. O xerife e o prefeito da cidade estão entre os entrevistados, e na fala de ambos ressoam esses pontos. O fato de Daisy estar bêbada próximo ao coma alcoólico não é prova do quanto ela não podia consentir o ato sexual, é apenas um detalhe que, nas entrelinhas, a coloca como presa fácil. O fato dos rapazes envolvidos em seu estupro terem mentido em depoimentos à polícia é também outro detalhe; afinal, eles são os “heróis da cidade”, jogadores de futebol americano, com um dele sendo parente um importante político local. As falas, quando surgem em contraponto às da mãe de Daisy, geram mais que revolta. Como dizer a uma mãe que a agressão de uma filha vale menos que resultados de um campeonato de futebol? Como confiar na sociedade ao seu redor depois dessa?

É o que se percebe numa outra figura que parece atrair, de forma magnética, o olhar de Cohen e Shenk no documentário: o do irmão de Daisy. Nele vê-se o american dream ruir: o rapaz jogava no mesmo time dos agressores da menina. Forte, belo, popular, ele viu seu pequeno e cômodo universo ruir após o caso: os “amigos” estupraram sua irmã, e os que não estupraram, lhes deram as costas. Ele afirmou ter arrombado as portas da casa inúmeras vezes para salvar a irmã das tentativas de suicídio, além de ter visto sua casa ser criminosamente incendiada por pessoas que não gostaram de ver a pacata Maryville, cidade de “gente de bem”, ser invadida por repórteres na cobertura do caso de Daisy. Sua passagem para o mundo adulto se deu à custa da desconfiança contra todas as instituições simbólicas que, a priori, deveriam acolhê-lo e protege-lo.

Ainda que de formato simples e até mesmo descuidado no momento em que tenta inserir histórias para além da das meninas que dão nome ao documentário, “Audrie & Daisy” promete gerar tanta discussão na sociedade americana quanto seu parente “The Hunting Ground”. A relevância e o respeito no tratamento do tema são seus trunfos, além de conseguir dialogar com sucesso com as faixas etárias bastante distintas para as quais de dirige, a de pais e filhos adolescentes; de quebra, ainda entrega uma belíssima canção-tema, composta por Tori Amos (ela mesma uma sobrevivente de abuso) para o filme. Só de tentar mudar a triste realidade que retrata, já vale a conferida.

8 Nota
Audrie & Daisy

A partir da história de Audrie Potts e Daisy Coleman, o documentário de Bonni Cohen promete gerar debate sobre estupro e bullying virtual.

Tema
9.5
Roteiro
7.5
Canção tema
9.5
Abuso SexualAudrie & DaisyBonni Cohencinema e feminismo
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Susy Freitas

Formada em Letras e Jornalismo e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Federal do Amazonas. Atua como professora na área de Comunicação. Escrevia sobre cinema em blogs pessoais e fez parte da equipe do Set Ufam. Integra a equipe do Cine Set desde 2013. É membro da Liga dos Blogues Cinematográficos.

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