“Eu, Olga Hepnarová”, da dupla de realizadores Tomás Weinreb e Petr Kazda, resgata episódio da década de 1970 para tratar da permanência do mal
Por Adolfo Gomes
Para se afastar do cariz oportunista da “biopic”, os realizadores tchecos Tomás Weinreb e Petr Kazda lançaram mão de todo o arsenal minimalista da austeridade: fotografia em preto e branco, narrativa lacunar, personagens freudianamente anímicos e fidelidade histórica. “Eu, Olga Hepnarová” (Já, Olga Hepnarová, República Tcheca, 2016) na sua platitude formal aspira, portanto, negar as facilidades eventuais do chamado “succès de scandale”, que remete a outro filme de título semelhante e cuja associação é quase automática para quem já passou dos 40 anos: “Eu, Christiane F…”
Então, entre a banalidade do “fait divers” e a cerimônia do episódio cravado na história, esse drama tcheco (uma das atrações da Mostra de SP nos dias 25/10 e 2/11) refaz o percurso de uma jovem que, na ressaca da primavera de Praga, ousou afirmar sua liberdade pessoal através do assassinato aleatório de “inocentes” transeuntes. Após proceder, em sua cabeça, o julgamento da sociedade – e dele fazer um registro epistolar – ela sentencia a quem estiver no seu caminho a pena sumária de “morte por atropelamento”.
Não se pode criticar os cineastas de psicologismo demasiado ou frieza no tratamento do tema. O que ressentimos aqui é de um tom menos ambíguo. Espera-se de um filme construído em “primeira pessoa” – a versão dos acontecimentos conforme as lembranças do narrador – não necessariamente a precisão ou verossimilhança, mas, pelo menos, um ponto de vista. “Eu, Olga Hepnarová”, ao contrário das expectativas básicas, é difuso no olhar que oferece sobre a via crucis da sua protagonista. Por vezes, é distanciado no registro documental e monocórdio da mecânica das instituições sociais (o Estado, a família, a escola, o ambiente de trabalho); em outras ocasiões, busca a empatia com a marginalização afetiva da anti-heroína, valendo-se dos códigos do romance de formação (amores frustrados, rebeldia, meditação filosófica).
O resultado de tal indecisão é uma crescente indiferença, que consolida o caminho para uma espécie de “panfletarismo” do mal. Aqui, a maldade não irrompe como uma força (sem controle) da natureza; não é amplificada pelo efeito assustador do acaso. É sempre tutelada pela caricatura da mãe insensível, do automatismo da assistência social, da amante fugaz, do médico “blasé”. Sequer a sequência do assassinato, filmada quase toda em um incômodo plongée, consegue impor a dimensão trágica deste gesto transgressivo.
No julgamento para valer, a que é submetida, Olga se aparta dos seres humanos, argumenta que suas ações correspondem à demanda suicida do “prügelknabe”( na tradução literal, bode expiatório), àquele a quem o mundo submeteu ao bullying supremo da expiação pelos pecados alheios. É o corte visceral que o filme se recusa fazer: romper com a lógica fatalista do martírio para plasmar o desespero capital de se sentir irremediavelmente só, isolado.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.
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