sábado, 24 de setembro de 2016

Visibilidade trazida por pessoas públicas e forma honesta com que falam do tema estimulam quebra do tabu do vitiligo



A cantora e compositora Tiê, 36, tinha 12 anos quando recebeu o diagnóstico: as manchas brancas que apareceram em seu rosto eram vitiligo. A partir dali, tentou vários tipos de tratamentos, chegando ao ponto de ir à praia com o rosto coberto de pomada para assaduras e completamente enrolado num lenço, tamanho era o desconforto. “Como é um quadro relacionado a questões emocionais, quanto mais nervosa eu ficava com a existência das manchas, mais elas pioravam”, conta.
Foram 12 anos nessa “luta”, até que, aos 24, ela desencanou. “Eu era dona de um brechó que tinha luz negra no banheiro. Sob essa luz, que tornava as marcas mais evidentes, passei a encará-las todos os dias, perceber que se transformavam. Também tenho um amigo que tatuava na época e me falou ‘as pessoas me pagam para fazer marcas em seus corpos e você já tem as suas, assuma isso’”, lembra. “E foi o que eu fiz, passei a chamar de ‘nem te ligo’ e desisti de escondê-las”.
A postura foi mantida depois que se tornou conhecida pelo trabalho com a música e ela inclusive não se furta de falar abertamente sobre o assunto nos meios de comunicação, como o faz aqui e já fez em outros veículos, como a revista “TPM” e o programa “Encontro com Fátima Bernardes”, no início do ano. Pouco tempo depois, no mesmo programa, o ator Igor Angelkorte,33, no ar atualmente na minissérie “Justiça”, da Globo, fez a mesma coisa. Outro caso emblemático é o da modelo canadense Winnie Harlow, 22, cujo vitiligo bastante evidente no rosto e no corpo não foi um empecilho para que se tornasse mundialmente famosa, estrelando campanhas publicitárias de grifes como Diesel e Desigual. 
A visibilidade trazida por essas pessoas públicas e a forma honesta com que falam do vitiligo evidenciam um processo, nos últimos anos, de quebra do tabu que envolve esse assunto. Mais do que isso, o estimulam, como explica a psicoterapeuta e psicóloga hospitalar Lorena Maciel Oliveira. “Quando a gente mistifica uma doença, nos distanciamos de sua solução. O vitiligo não é uma coisa do outro mundo, é uma doença de seres humanos, como qualquer outra. E está no rosto, como a acne, por exemplo. Por que de uma nós falamos e da outra não?”, questiona. “Essa postura de pessoas da mídia, onde nasce que o que é bonito é a pele de pêssego, que o que é desejável é a pele branca, que o cabelo bom é o liso, é fundamental para a desconstrução dessas ideias. Muitos padrões fazem com que não olhemos para a realidade e o vitiligo é real como qualquer outra coisa. Se na mídia se desconstrói essa fantasia, podemos falar dele e de outras supostas inadequações de forma natural”.
 
Conjunto de fatores
 
O vitiligo é uma doença autoimune que provoca a destruição pelo próprio organismo dos melanócitos, células responsáveis pela produção da melanina, que pigmenta nossa pele. Ele atinge, em média, 1% da população mundial. Existem diversas teorias para explicar a origem do vitiligo, mas nenhuma consegue fazê-lo separadamente. “Não temos muitas certezas a respeito do vitiligo, só algumas evidências”, explica a dermatologista Giselle Froes. “Percebemos que muitas vezes está relacionado a fatores emocionais, como estresse e traumas, e há também o fator genético, mas que também não é determinante. No fim das contas, parece que o que causa o vitiligo é um conjunto disso tudo: a genética, as questões emocionais e um desequilíbrio do sistema imunológico”.
O surgimento das manchas pode acontecer em qualquer etapa da vida, da infância à terceira idade. “A maioria dos pacientes apresenta manchinhas pequenas, às vezes escondidas, que vão crescer lentamente. Casos que acometem o corpo todo, se alastrando rápido, são mais difíceis de acontecer. Ambos, porém, têm tratamento”, afirma a dermatologista, que esclarece que suposta cura milagrosa descoberta em Cuba, alardeada na internet no ano passado, não passa de um boato. “Pode-se chegar à cura, sim, mas é um processo. O procedimento pode envolver medicamentos tópicos ou via oral, fototerapia, laser e até cirurgia”.
 
Condição que dói na alma
 
Mesmo que não seja provocada por fatores emocionais, toda doença traz em si uma carga emocional. No caso do vitiligo, saber lidar com essa carga é especialmente necessário, uma vez que ela pode influenciar o avanço da doença, como explica a dermatologista Giselle Froes. “Ela pode afetar a autoestima, provocar depressão. Mesmo que não seja aparente, pode atrapalhar essas pessoas a desenvolverem intimidade com outras. E vira um ciclo vicioso, porque esses quadros podem estimular o aumento das lesões”, diz.
Além das manchas, no entanto, o vitiligo não causa nenhuma alteração física. Por isso, costuma-se dizer que ele dói mais na alma do que no corpo. “Existe uma tendência de comportamento entre os pacientes que é a de se autoexcluírem da sociedade, por meio de não serem aceitos. Mas a questão central não é como as pessoas vão olhar, mas como cada um interpreta o olhar do outro”, ressalta a psicóloga hospitalar e psicoterapeuta Lorena Maciel Oliveira. “Quem entende a diferença como uma coisa negativa, vai ficar incomodado com esse olhar. Mas se ela conseguir literalmente se sentir bem na própria pele, não vai ser afetada por isso”, completa.
Foi o que o personal trainer Lucas Vieira Santos, 30, fez, desde que a mancha de vitiligo do seu queixo surgiu, aos 17 anos. “Eu vejo como se fosse uma marca minha mesmo, algo que me torna particular. Tenho amigos que têm meu contato salvo nos telefones como Lucas Barba Branca (os pêlos da região também são despigmentados), não tenho nenhum problema com isso, é como se fosse Roberto Careca ou algo assim”, afirma.
Com o quadro estável desde o início, ele diz que hoje nem pensa em tentar repigmentar a área. “É uma coisa que está incorporada, não me causa nenhum dano, não consigo me imaginar mais sem. Sinceramente, se no futuro houver um tratamento mais fácil, posso considerar fazer, mas por enquanto prefiro deixar assim”, diz.
 
Família
Quando surgiram manchinhas brancas na pálpebra, atrás do lóbulo da orelha e na perna da estudante Giovanna Parreiras, 21, ela tinha apenas 6 anos e não se deu conta do que aquilo representava. Porém, sua mãe, a empresária Patrícia Parreiras, 23, ficou apavorada. “Eu ficava com medo do que as pessoas com vitiligo passavam, receio de como viviam, se relacionavam. Até porque aparência é muito importante para mim e mesmo sabendo que deveria ser menos, eu me colocava no lugar dela”, conta.
Depois de passar por muitos médicos, tentar diferentes medicamentos e até fazerem tratamentos espirituais, no início da adolescência, Giovanna já não tinha mais as manchas. “Me lembro de ter um desconforto, principalmente pelas roupas que escolhia usar. Mas não é uma lembrança dolorosa para mim, porque sempre tive um apoio muito grande não só da minha mãe, mas de toda família”, diz a estudante.
Mesmo sem as manchas, o vitiligo deixou um legado em sua vida, que é o da atenção à saúde psicológica. Até porque o seu foi um caso em que a doença foi desencadeada por questões emocionais – a ausência do pai, que passou um longo período trabalhando na Europa. “Não só por isso, mas eu faço acompanhamento psicológico, porque entendo a influência do emocional na nossa vida. E o vitiligo, eu costumo dizer, é uma doença que coloca para fora se você não está bem por dentro”, afirma.
A psicóloga Lorena Maciel Oliveira reafirma a importância do acompanhamento. “Nenhuma doença, fisiológica ou emocional, acontece sem que as duas coisas estejam associadas, corpo e mente são a mesma coisa”, diz. “Nesse caso, o acompanhamento se faz necessário para ajudar a lidar com as dificuldades sociais e internas que a doença desencadeia”. 
 
Vitiligo na mídia
 
Ícone. A autópsia do corpo do astro pop Michael Jackson (1958-2009) confirmou que ele tinha vitiligo, justificativa que ele já tinha dado no programa da apresentadora Oprah Winfrey, em 1993, para o embranquecimento de sua pele. Possivelmente o artista mais popular que manifestou a doença, foi também um dos primeiros a falar sobre ela. Sua relação conturbada com a própria imagem, no entanto, – além da morte prematura – o impediu de ser um advogado para a causa. 
 
Empoderada. Depois de sofrer bullying por boa parte de sua vida, a modelo Winnie Harlow, 22, ganhou visibilidade após participar do reality show “America’s Next Top Model”, em 2014, e se definir como a “modelo porta-voz do vitiligo”. De lá pra cá, a jovem, que tem vitiligo desde os 4 anos, estrelou campanhas para grifes famosas e participou do clipe “Guts Over Fear”, de Eminem e Sia e do álbum visual “Lemonade”, de Beyoncé. “Há quem tenha a pele negra e quem tenha a pele branca. Eu simplesmente tenho as duas”, disse.
 
Na ficção. Em abril deste ano, numa participação no programa “Encontro com Fátima Bernardes”, o ator Igor Angelkorte falou que tem vitiligo desde os 10 anos de idade. Ele revelou que sofria bullying, mas já naquela época resolveu assumir as manchas como parte de sua identidade. Na minissérie “Justiça”, na qual está no ar, ele pediu para não usar maquiagem sobre as marcas, que ficam nos olhos. “Tomara que um dia eu tenha um personagem que tenha vitiligo para passar mais informação”, disse.
 

Tatuagem. Contada pelo site BuzzFeed, a história da norte-americana Tiffany Posteraro viralizou na internet no ano passado. Cansada de esconder as manchas no corpo e dos olhares constrangedores que recebia, ela resolveu tatuar no braço a frase “o nome disso é vitiligo”. “Minha vontade era dizer: ‘vamos lá, pessoal! Me perguntem o que é!’”, disse. A atitude pareceu tirar o elefante branco da sala e tornou as pessoas mais confortáveis para falar com ela do assunto. “Agora me perguntam sobre a condição e saem informados. É libertador”.



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