Quem nunca foi vítima de bullying por causa de um celular, um aplicativo, site e até TV a cabo?
Em crônica anterior, revelei que havia casado com meu celular. Também
escrevi que não sabia até quando poderia me manter fiel a ele. Meus
amigos e amigas costumam pular a cerca rapidinho, e trocam de celular
como trocam de mulher e marido. Não sou assim. Costumo me afeiçoar a
tudo o que um dia me facilitou a vida, e me vez experimentar o instante
que vale por uma existência inteira, vamos dizer assim. E isso não se
aplica apenas ao meu celular, que se revelou smart e soube não apenas
organizar meu dia a dia como me diverte com seus games, por mais
primitivos que eles sejam.
Dias atrás eu enviava um torpedo do meu querido consorte quando a amiga
que estava ao meu lado arregalou os olhos, fez uma expressão de nojo e
comentou: “Você está usando esse celular aí? Você um dia usou iPhone e
agora está com essa porcaria. Não tem vergonha, não?” Constrangido,
tentei defender as virtudes do meu pequeno aparelho. Argumentei que,
além de gostar muito do meu celular “atrasado”, o sistema era Android,
mais ágil que o da Apple... Ela não perdoou e disparou: “Daqui a dois
anos ninguém mais vai falar em Android. Deixa disso, não reconheço mais
você”. O pior foi que ela se despediu e nunca mais entrou em contato,
como se tivesse descoberto um ser virótico, contaminado por uma espécie
de lepra digital capaz de fazer o indivíduo – no caso, eu – regredir à
idade analógica. Temo encontrar essa amiga novamente, pois talvez ela me
vire a cara, me trate com desprezo ou mesmo medo de ser contaminada
pelo vírus da regressão.
Eis aí uma história exemplar. Ela mostra que fui vítima de preconceito
por causa da tecnologia. Quando contei o ocorrido a outras pessoas, elas
passaram a narrar histórias engraçadas de bullying pelos mais diversos
tipos de tecnologia. Acontece com quem não tem TV a cabo, aplicativos,
contas de e-mail, navegadores e mecanismos de busca. Um colega de
redação contou que uma estagiária zombou dele quando notou que ele
estava usando o Yahoo! em vez do Google para fazer uma busca. Tem gente
que diz que não confia em ninguém que usa o Hotmail. Isso para não falar
no Orkut – as pessoas que teimam em ficar por lá são tidas como
desinformadas, para dizer o mínimo.
Em outros termos, os usuários de tecnologias consideradas recém-obsoletas pela elite da cultura digital agora são estigmatizados e excluídos do convívio social – ou do convívio com os iluminados pelas LEDs de última geração... Não há nada mais antigo e desprezível do que as coisas recém-arquivadas.
A necessidade de atualização frente ao avanço tecnológico gerou dois fatos: um novo tipo de consumismo, baseado na corrida desenfreada pelo novo, e uma distorção, que envolve a pressão social. Já não basta acompanhar e se adaptar às novidades. Se você não estiver na crista da crista da onda, será vítima de assédio moral. Ninguém dá mais tempo ao outro de se alinhar. O resultado é uma quantidade enorme de pessoas que pensa que consegue se atualizar, mas que se encontra sumariamente excluída. Dessa forma, surge a inconsciência, a alienação digital.
Para quem é antenado, acontece o fenômeno que alguns denominam de orkutização, que é outro nome para discriminação. Retorna a velha história: quando alguém não se enquadra aos meus padrões, ela é automaticamente considerada “um outro”. O preconceito implica a exclusão do outro, de um outro que me amedronta – e horroriza. Afinal, ao encarar o outro como ultrapassado, não quero ver que eu próprio tenho limites de tempo e espaço. Ver o outro usando uma rede social fora de moda, ou buscando informações em um buscador velho, mostra o quanto eu recentemente fui velho, menor e mais medíocre que as máquinas e software que uso. Tal percepção anuncia que um dia eu serei ultrapassado – e alvo de discriminação por causa disso. Minha vocação a mártir me faz corroborar o juramento que fiz a meu celular diante do altar. Vou viver feliz até o fim ao lado de minhas antigas traquitanas.
(Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras.)
Fonte: Revista Época
Em outros termos, os usuários de tecnologias consideradas recém-obsoletas pela elite da cultura digital agora são estigmatizados e excluídos do convívio social – ou do convívio com os iluminados pelas LEDs de última geração... Não há nada mais antigo e desprezível do que as coisas recém-arquivadas.
A necessidade de atualização frente ao avanço tecnológico gerou dois fatos: um novo tipo de consumismo, baseado na corrida desenfreada pelo novo, e uma distorção, que envolve a pressão social. Já não basta acompanhar e se adaptar às novidades. Se você não estiver na crista da crista da onda, será vítima de assédio moral. Ninguém dá mais tempo ao outro de se alinhar. O resultado é uma quantidade enorme de pessoas que pensa que consegue se atualizar, mas que se encontra sumariamente excluída. Dessa forma, surge a inconsciência, a alienação digital.
Para quem é antenado, acontece o fenômeno que alguns denominam de orkutização, que é outro nome para discriminação. Retorna a velha história: quando alguém não se enquadra aos meus padrões, ela é automaticamente considerada “um outro”. O preconceito implica a exclusão do outro, de um outro que me amedronta – e horroriza. Afinal, ao encarar o outro como ultrapassado, não quero ver que eu próprio tenho limites de tempo e espaço. Ver o outro usando uma rede social fora de moda, ou buscando informações em um buscador velho, mostra o quanto eu recentemente fui velho, menor e mais medíocre que as máquinas e software que uso. Tal percepção anuncia que um dia eu serei ultrapassado – e alvo de discriminação por causa disso. Minha vocação a mártir me faz corroborar o juramento que fiz a meu celular diante do altar. Vou viver feliz até o fim ao lado de minhas antigas traquitanas.
(Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras.)
Fonte: Revista Época
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