RIO - Os socos que um aluno deu no rosto da diretora da Escola Municipal João Kopke, em Piedade, no último dia 21, são um exemplo extremo do que vem acontecendo em várias salas de aula da cidade — conflitos frequentes entre estudantes e educadores. Apesar de a Secretaria municipal de Educação só ter registro de 53 casos de agressão a professores nos últimos dez anos, educadores de conselhos tutelares da cidade sabem que o magistério convive com uma violência diária e estimam em 80% a subnotificação de atos infracionais. São casos que não chegam às delegacias, por medo dos envolvidos ou para evitar a burocracia legal. Um dos últimos episódios aconteceu no Leblon, no Ciep Nação Rubro-Negra. E é de arrepiar, tanto pela idade dos envolvidos, todos com menos de 10 anos, quanto pela irresponsabilidade do ato.
Há duas semanas, quatro estudantes do Ciep atearam fogo a uma sala de aula. Não satisfeitos, os meninos, moradores da Rocinha, escreveram no chão, com as cinzas, o nome da professora. Sem saber que se tratava de uma ação de alunos, ela temeu que fosse uma ameaça. O caso foi discutido em sigilo na 2ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE). Uma das pessoas que participaram do encontro conta que, quando se procura saber mais sobre os alunos envolvidos nesse tipo de caso, descobrem-se histórias de vida marcadas pelo abandono e pela miséria.
— Uma criança viveu com o pai no Nordeste até os 6 anos e estava há apenas três meses com a mãe no Rio, uma verdadeira desconhecida para ela. Outra era filha de um bandido, que já tinha matado pessoas. Uma outra era criada pela avó porque a mãe é totalmente negligente. Quando você pega um pouco da história de cada um dos alunos, descobre que eles apenas reproduzem a violência do seu dia a dia — diz um educador.
Alunos provocaram incêndio
A Secretaria municipal de Educação informou que, de acordo com a 2ª CRE, foi aberta uma sindicância para apurar um princípio de incêndio, provocado intencionalmente por alunos, no dia 14 deste mês. Após reunião entre a coordenação, a direção da unidade e os responsáveis pelos estudantes, o caso foi encaminhado ao Conselho Tutelar, que decidiu pela transferência dos alunos, cada um para uma escola diferente.
A conselheira tutelar Andreza Alves, há mais de cinco anos atuando na região do Centro, percebe um aumento dos casos de agressão, que ela atribui à negligência familiar e à falta de profissionais nas unidades educacionais.
— A impunidade é um fator importante. Se um aluno joga uma lata de lixo, agride um professor ou furta um celular e nada acontece, há um estímulo para que a situação se repita. Os casos têm aumentado muito e, ao mesmo tempo, há muita subnotificação. Além do medo, muitas vezes o aluno é filho de um traficante local, a escola não quer enfrentar a rotina de depoimentos, exames de corpo de delito, audiências judiciais — conta a conselheira, que teve uma de suas visitas a colégios recebidas com uma explosão de bomba dentro de uma lixeira, que por sorte não feriu ninguém.
Para Edmílson Ventura, conselheiro tutelar da Zona Sul, o comportamento inadequado de muitos estudantes não ocorre só em escolas próximas a comunidades, embora nessas áreas o problema seja mais acentuado:
— São alunos vítimas de um quadro social muito grave. O comportamento deles nunca vai ser como a traquinagem de uma criança normal, vai ser sempre uma coisa que descamba para algo próximo de uma tragédia, se não for uma tragédia.
De acordo com a delegada Bárbara Lomba, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), os casos dentro do ambiente escolar são responsáveis por cerca de 10% do total de ocorrências da unidade, que fechou o ano passado com cerca de 1.300 atendimentos. Ela observa, porém, que há uma predominância de casos de lesões corporais por conflitos entre alunos. Sobre uma possível subnotificação, a delegada acredita que, em alguns casos, é válido tentar resolver o problema dentro da escola.
— Conflitos menos graves podem ser resolvidos dentro da escola e não precisam virar casos de polícia. Mas os atos infracionais têm previsão legal no Estatuto da Criança e do Adolescente. O que procuramos fazer aqui é encaminhar para a Justiça, mas também buscar parceria com os conselhos tutelares e o Ministério Público para uma ação junto às famílias — disse a delegada.
O caso do professor de matemática das redes municipal e estadual Rámon Ricardo Ribeiro virou estatística da polícia, após ele ser agredido, em outubro passado, dentro do Ciep Raul Seixas, em Costa Barros. A confusão começou a ser delineada quando, cansado da indisciplina de um aluno de 17 anos, que não parava de conversar, Rámon mandou que o estudante deixasse a sala. Ele continuou explicando a matéria à turma de ensino médio do horário noturno, mas, pouco depois, foi surpreendido pelo retorno do jovem, que invadiu a sala com a mãe, um irmão e um amigo, todos moradores do Morro do Chapadão, vizinho à escola. A mulher foi a primeira a agir: aos berros, deu um tapa no rosto do professor, que revidou.
O que se seguiu foram cenas explícitas de pugilato: o aluno e sua família, ajudados pelo amigo, jogaram Rámon no chão e o atacaram com socos e pontapés. A turma, que assistia a tudo atônita, teve que intervir e salvar o mestre da agressão. O professor registrou queixa na polícia e agora processa o Estado por danos morais.
— Se todos os professores que são agredidos, tanto física quanto verbalmente, dessem queixa na delegacia, o comportamento dos alunos mudaria na hora. Mas, infelizmente, a cada dez agredidos, apenas um faz registro — diz Rámon, que conta já ter apartado muitas brigas, de diferentes tipos. — Tem de aluno com aluno, aluna com aluna, agressão a professor. Quando a gente chama a família, nem sempre resolve. Muitas mães dizem que a criança tem que ir para a escola, causando ou não conflitos, para que elas não percam benefícios como o Bolsa Família — acrescenta, relatando uma rotina exaustiva, que inclui crianças de 11 e 12 anos que xingam os mestres sem economizar nos palavrões.
Professora foi ameaçada por aluno
Rámon é um dos poucos professores que rompem o silêncio que marca, muitas vezes, as relações entre docentes e a secretaria quando o assunto é violência. Professora de inglês, R., que não quer se identificar temendo problemas, diz que pediu transferência de uma escola, na área da Leopoldina, após sucessivos conflitos com um grupo de alunos:
— No ano passado, mandei que um aluno, que sempre ficava com fone no ouvido escutando música na minha aula, saísse de sala. Ele me mandou tomar em tudo que é lugar. Pouco tempo depois, entrou com amigos na turma e colocou contra a parede vários alunos da 6ª série. Eu vi que eles iam apanhar, fiquei desesperada. Liguei do meu celular para o porteiro da escola, que subiu correndo para ajudar. Como ele é da mesma comunidade dos alunos, é respeitado. Agora, esse mesmo aluno me ameaçou de novo, disse que eu não sabia quem era o pai dele, que ia ver o que me aconteceria do lado de fora da escola. Não tive mais condições de ficar.
A professora teve que apelar para o porteiro da escola porque a unidade em que ela trabalhava só tem dois inspetores, que precisam se dividir por três andares e centenas de alunos.
— O horário deles também não é igual ao do turno escolar. Há momentos em que só há um inspetor para a escola toda. Os alunos saem de sala na hora em que bem entendem, matam aula no pátio sem ser incomodados, fazem baderna no corredor. Não há quem os repreenda — diz R., acrescentando que as agressões são frequentes. — Se os professores que são ameaçados, que ouvem que devem tomar cuidado do lado de fora da escola, forem reclamar toda vez, não fariam outra coisa na vida.
A falta de inspetores em número adequado é um dos problemas apontados por Wiria Alcântara, diretora do Sindicato Estadual de Profissionais do Ensino. Para ela, a falta do profissional favorece a ocorrência de conflitos como o da Escola João Kopke, onde a diretora Leila Soares foi agredida.
— Sem o inspetor, muitas vezes cabe ao diretor da escola impor limites. Ele tem que, além de lidar com as questões administrativas, cuidar de conflitos que caberiam a um psicólogo — critica.
A Secretaria municipal de Educação informou que, das 1.005 escolas da rede, 942 já contam com agentes educadores, como são chamados os inspetores. Cada um deles, nas unidades de 6º ao 9º ano, é responsável por 12 turmas. Na João Kopke, onde estudam 613 alunos, há apenas dois funcionários nessa função.
Para mediar tantos confrontos, a secretaria criou há três anos o Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares, que costuma atuar em escolas onde os ânimos estão acirrados.
— Procuramos incentivar a convivência, as noções de respeito, mostrar a importância do diálogo — diz Mércia Cabral de Oliveira, coordenadora do núcleo, que garante que a situação está sob controle. — Esse caso de Piedade é uma situação extrema, as escolas não estão nessa situação.
Mércia explica que, em muitos casos, a equipe, que conta com psicólogos, presta atendimento ao estudante e à família.
Já na Secretaria estadual de Educação, que não tem um levantamento de casos de agressão, um núcleo parecido foi formado após a tragédia na Escola Tasso da Silveira, em Realengo, onde um ex-aluno entrou em abril de 2011 e matou 12 crianças.
— Fizemos cartilhas voltadas para os professores para que eles saibam o que é crime, o que deve ser encaminhado ao Conselho Tutelar. Também mediamos conflitos dentro das escolas — informa Heloísa Werneck, assessora técnica de Saúde e Bem-Estar da secretaria estadual.
Segundo Heloísa, um concurso público foi realizado para contratar psicólogos e assistentes sociais para trabalhar no grupo. Coordenadores pedagógicos e orientadores educacionais também estão sendo chamados.
— Esses profissionais poderão identificar mais facilmente os alunos que precisam de ajuda e encaminhá-los para tratamento psicológico.
Fonte: Jornal Extra
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