Estudo com 600 alunos aponta: é preciso reatar pontes entre pais e professores e redefinir as responsabilidades no cuidado com estudantes.
A família e as escolas não estão preparadas para lidar com a violência dentro das salas de aula. Após quatro anos de pesquisa, foi a essa conclusão que chegou a professora em psicologia da educação Ivany Pinto. Formada em psicologia e com mestrado e doutorado na área de educação, a professora ligada à Universidade Federal do Pará é pós-doutoranda e encerrou, em 2010, uma pesquisa que analisou o contexto dos acontecimentos de casos de violência em quatro escolas estaduais públicas da capital paraense, dentre instituições do centro e da periferia.
A partir das respostas de cerca de 600 alunos e professores das escolas identificadas como as que apresentam os maiores índices de violência, a pesquisadora pôde chegar a indicativos do problema, como a influência de grupos em ações de violência, a falta de orientação dos jovens e a ausência de um planejamento nas escolas públicas.
Sobre esse assunto, a pesquisadora conversou com o DIÁRIO na entrevista a seguir:
P: Quando você cita violência nas escolas pesquisadas, é só a violência física?
R: Essa violência não é só a física, mas também aquela que a gente não enxerga, que tem seus efeitos na aprendizagem. É a violência psicológica. Ela está ligada aos assédios e ao bullying, que é uma palavra que eu quero tirar do inglês. Agora está muito em moda o bullying, mas vamos falar de agressão, aquela agressão que é sutil e permanente. Tão sutil que não dá para o outro que esteja fora, que não esteja convivendo cotidianamente naquele contexto, dizer que aquilo é uma agressão velada.
P: Então, houve uma banalização do termo bullying?
R: Sim. Tudo é bullying. E a gente sabe que essas agressões já existem há muito tempo, não só na escola como fora também. A nossa sociedade não lida com as diferenças, ela lida com o ‘tudo igual’. Há uma dificuldade muito grande, nos dias atuais, de a gente conviver com a diferença. E porque há essa dificuldade tão grande? Pela influência do virtual. Nós deixamos de nos relacionar. As conversas são todas virtuais, onde eu posso dizer o que eu quero, o que penso e imagino. Não é preciso olhar olho no olho do outro. Então, eu vou formando a minha imagem de acordo com a demanda do outro que está atrás. É diferente se eu estiver face a face com ele. Se eu dissesse alguma coisa, pessoalmente, que outra pessoa tem outra opinião, a pessoa iria dizer que não concorda com isso. Haveria um diálogo e esse diálogo teria como produto uma reflexão.
P: O jovem, hoje, mesmo com toda essa informação, é intolerante a essa troca de informações?
R: Ele é intolerante porque estamos vivendo em um momento na sociedade em que o que se passa na escola é o que se passa aqui fora. Estamos vivendo em uma sociedade em que a gente não tem mais tempo para nada. Antes, nós tínhamos tempo para ir a um aniversário, de ir à casa de amigos no final de semana, etc. Essa socialização acabou. O tempo da informação e do trabalho atropela o tempo humano.
P: O que mudou hoje, então, foi a forma da “brincadeira” ou a forma como as pessoas passaram a recebê-la?
R: As “brincadeiras” já aconteciam antes, mas existia diálogo na família. Existiam outros grupos de pertencimento em que esse jovem poderia estar. Ao chegar em casa, o jovem pertenceria a outro grupo e ali ele poderia elaborar e aprender coisas. Só que agora ele sai da escola ameaçado, intimidado, e quando chega em casa não tem mais aquela conversa e também não tem grupo. Ele é do grupo do “eu sozinho”. Houve um distanciamento dessa socialização, desse espaço de convivência. E essa socialização vai se desgastando e os valores também vão junto com elas porque é nesse espaço de convivência que a gente aprende a respeitar e a reconhecer que valores que são colocado ali.
P: A escola e a família estão preparadas para lidar com isso?
R: Não. E hoje a gente cobra tanto dessa família, mas tanto a família quanto a escola necessitam de uma orientação. Não existe um espaço que ofereça orientação para uma mãe que não saiba o que fazer. As práticas dessas mães são as mais absurdas possíveis porque elas não têm orientação.
P: Então o que mudou foi o contexto?
R: O contexto mudou, mas até as brincadeiras mudam. Porque se o contexto muda, as brincadeiras vão sendo cada vez mais sofisticadas. Hoje temos o virtual. No meu tempo não se tinha o virtual. Tinha apenas a porta do banheiro para escrever e hoje não é mais a porta do banheiro. Já é o virtual que oferece uma ameaça à própria integridade do sujeito. É uma forma de tomar todos os espaços para ameaçar. Quem agride sempre é um sujeito que passou por alguma agressão ou que tem uma baixa autoestima.
P: Você falou sobre a falta de socialização entre as pessoas, mas nas escolas também não está faltando esses espaços?
R: A gente não vê um planejamento nas escolas. Os planejamentos hoje são só pontuais. Quando acontece uma situação, ou de agressão velada ou de agressão manifesta, se faz alguma coisa, mas são medidas corretivas e não preventivas. Com os estudos que a gente faz, observamos que a escola deveria ter permanentemente o projeto de convivência.
P: Como seriam esses projetos?
R: Seriam no sentido de se lidar com acordos, de se trabalhar essa diferença. Porque eu não gosto do outro que usa óculos? O que acontece? Isso precisa ser conversado. O que acontece que me faz ter vontade de tomar todos os espaços de uma pessoa para perseguir, para fazer com que ela se destrua? É uma perversidade. A estrutura perversa é no sentido de que eu faço a minha regra e eu faço a minha lei. O perverso é a lei, ele se coloca. Ele não cumpre uma lei que impera para todos nós. O perverso burla essa lei. Então, o que está faltando na educação é essa permuta de limites e aberturas. Os pais estão perdidos e precisam urgentemente de uma orientação.
P: Quem deve prover esse acompanhamento, o Estado?
R: Deve haver uma parceria entre a escola e a família. Sem essa parceria não se faz nada. Tu podes deixar o teu filho na escola, mas eu não tenho contato contigo, eu não sei como tu estás vendo o teu filho lá na tua casa. Não há essa relação. No meu tempo, a escola tinha a figura do inspetor. É necessário que nos espaços de convivência da escola tenha uma pessoa adulta para observar na hora em que acontecem os grandes aglomerados. No meu tempo, a mínima ação que indicasse uma agressão, o inspetor vinha e dizia logo: “o que está acontecendo aí?”.
P: A educação das crianças está sendo deixada nas mãos das escolas?
R: Sim, estão sendo deixadas e as escolas ficam com essa sobrecarga. Mas a escola também não pode perder de vista que ela tem uma função que é de ensinar. Ela tem a função de educar, mas não se pode perder de vista que ela também tem essa relação com o ensino. O indivíduo vai precisar disso para se inserir no mercado de trabalho e para a formação dele. A escola não traz pra si essas questões, até porque ela se sente perdida, ela faz projetos que são pontuais. Apesar disso, a família não pode estar longe. O que a gente tem é uma briga de culpados entre a família e a escola.
P: É possível dizer que a vítima de hoje é a pessoa doente de amanhã? O jovem pode vir sofrer algum problema psicológico a partir da agressão que ele sofre hoje?
R: Pode. Todo sujeito que constrói a sua identidade frágil ou que sofre uma agressão, mais tarde, se ele puder, vai à forra. Não tenha dúvida. É uma bola de neve. E não se pode estimular isso, porque, se fizermos isso, vamos nos matar nessa sociedade. Não se pode fazer a pedagogia do revanchismo. O que a gente tem é que educar esse sujeito, família e escola juntos, para se conviver com o diferente. É essa mão dupla entre a família e a escola que precisa ser construída. O que vemos é que há um racha, cada um acusa o outro. Está muito difícil pensar no que fazer porque para educar um humano não tem receita. A família abre mão de educar quando tudo passa a ser sim, quando tudo pode.
P: E qual o papel do professor nesses casos, já que ele pode tanto ser a vítima como o algoz?
R: O papel do professor na sala de aula é instituir esse diálogo, no contexto da aula dele. Mas, o que a gente vê hoje é aquele professor que não tem uma permanência na escola e isso também atropela qualquer processo que seja permanente. Isso dificulta a realização de um projeto que esses professores poderiam segurar.
P: A falta de tempo prejudica a identificação de algum sintoma por parte do professor?
R: É preciso que o professor observe e converse com a gestora. Às vezes, eles não têm tempo nem de conversar com a gestora. Mas, mesmo com esse contexto, o professor deve observar, assim como a família. Então, o que está faltando nesse contexto é um projeto de convivência que trabalhe família e escola. Tem mil alternativas que podem ser criadas dependendo do contexto da escola. Mas tudo depende do contexto. Geralmente uma escola estadual de porte grande é um perigo porque ela agrupa muitos alunos e o gestor perde o controle. Então o que se pode sinalizar, a partir dessa pesquisa, é que a escola tem que trabalhar nessa direção da relação entre família e escola. Porque a pessoa que cuida desse jovem não está se responsabilizando. É como os próprios jovens da pesquisa disseram: “a gente precisa de uma orientação, precisamos de alguém que se responsabilize pela gente”. E o que estamos vendo [com esses casos] é um profundo desrespeito das regras sociais.
Fonte: Diário do Pará
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