Estudo nacional com 590 estudantes universitários revela quão comuns são situações de agressão psicológica, física ou mesmo coerção sexual. Autoras pedem mais sensibilização
Imagine um anúncio publicitário em que um adulto encomenda uma lista de presentes ao Pai Natal, alegando que até se portou bem durante o ano e "não bateu na mulher". Otília Monteiro Fernandes, investigadora do departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, utiliza o exemplo para mostrar até que ponto a violência doméstica entre o casal é muito mais condenada pela sociedade do que a violência continuada entre irmãos.
"Há dois anos tínhamos um spot publicitário de uma grande empresa em que o argumento da criança era não ter batido no irmão", lembra a investigadora, acrescentando que a primeira situação revoltaria naturalmente qualquer espectador. Um novo estudo da UTAD, realizado pela estudante de doutoramento Inês Relva, revela pela primeira vez a realidade do bullying entre irmãos em Portugal. Numa amostra de 590 estudantes universitários, 70% admitem ter sofrido agressões físicas sem sequelas e 40% responderam afirmativamente a questões como se, aos 13 anos, alguma vez tiveram uma entorse, pisadura ou fractura resultante de uma luta com um irmão, ou se chegaram mesmo a desmaiar ou a ter de ir ao médico. A agressão psicológica é o fenómeno mais comum, com 90% dos inquiridos a admitirem ter sido vítimas de ofensas ou ameaças.
As respostas perante o cenário de coerção sexual causam mais estranheza. Nesta amostra, 11,4% dos homens e 4,9% das mulheres admitem ter exercido algum tipo de pressão sexual sobre o irmão/irmã, comportamentos que segundo a escala usada por Inês Relva podem incluir forçar o irmão a ter relações sexuais sem preservativo, forçá-lo a ter relações quando não queria ou usar força com intuito sexual. Também são os homens que admitem ter sido mais vezes vítimas de coerção sexual - 10,4% contra 6,8%.
Fronteira ténue A fronteira entre aquilo que é a rivalidade normal entre irmãos e situações de abuso pode ser ténue, admitem as investigadoras, sublinhando, contudo, que hoje já existem estudos suficientes para distinguir o que é violência do que não é. Inês Relva nota por exemplo que a exploração sexual - a exibição ou o toque mútuo - entre irmãos é natural, mas, à partida, a idade das crianças, a frequência dos actos e a percepção que as vítimas têm deles podem ajudar a definir uma situação de abuso.
A análise dos inquéritos anónimos - realizados entre 2009 e 2010 - ainda não está concluída, mas a investigadora adianta que já foi possível relacionar as situações em que as crianças sofreram mais vezes agressões com a perpetração de violência no namoro ou mesmo de outras agressões no seio familiar. Ainda assim, os pais e as mães inquiridos poucas vezes reconhecem que estes comportamentos se enquadram numa moldura de violência. "Concluem muitas vezes que é normal um irmão bater no outro, mas é normal que deixe marcas físicas? Se um pai deixa uma marca física na mãe é normal?", questiona Inês Relva. "Se um pai bate num filho e deixa marcas é abuso e crime público - o facto de ser entre irmãos não deixa de ser abuso. Tem sido uma realidade um bocado esquecida que queremos aprofundar."
Também Otília Monteiro Fernandes, há 15 anos a estudar as relações entre irmãos em Portugal e autora do livro "Ser Único ou Ser Irmão", alerta que há conflitos entre irmãos que "podem e devem ser evitados", porque se sabe que as vítimas mais fracas verão o seu desen-volvimento afectado. "Como é que ainda toleramos abusos entre irmãos que não toleramos em mais nenhuma relação?", questiona, sublinhando que por vezes são os próprios pais que erram na gestão da relação e encarregam os filhos mais velhos de disciplinar os mais novos. "É preciso ensiná-los a fazê-lo sem violência." Isto e resolver a "permissividade" da sociedade são prioridades, diz.
O estudo da UTAD é um dos trabalhos apresentados na segunda Conferência Internacional sobre Abuso e Negligência de Crianças, que decorre esta semana no Porto. Entre outras linhas de investigação, o grupo começou a entrevistar vítimas de abusos denunciadas à APAV, em que o agressor era irmão ou irmã da vítima. No ano passado foram 110 casos, 1,6% do total.
Fonte: Ionline
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