por Ana Maria Madeira
Para Renato Alves, pesquisador do Núcleo de Estudos da violência (NEV) de USP, proposta do Ministério Público é oportunista
A discussão sobre o bullying ganhou mais espaço midiático com os assassinatos na escola de Realengo e o caso “Zangief Kid”, garoto australiano famoso por defender de agressores na escola e ganhar milhares de acessos no Youtube, virando uma espécie de herói anti-bullying. Uma semana depois do ocorrido no Rio de Janeiro, promotores da Infância e Juventude de São Paulo apresentaram um anteprojeto que considera a prática criminosa, com pena variando de um a quatro anos, além de multa. Para menores de idade, o documento prevê detenção na Fundação Casa.
Atualmente, se o agressor tiver menos de 18 anos, ele irá responder por um processo, como determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e os pais respondem judicialmente, geralmente por injúria ou lesão corporal. E se a escola ou instituição em que ocorreram as agressões não tomar nenhuma providência, pode também sofrer processo por danos morais.
“Esse endurecimento da lei previsto pelo projeto é algo comum no Brasil em momentos de comoção. A medida é apressada e oportunista. O que está previsto no ECA já dá conta de punir os casos mais graves”, diz Renato Alves, pesquisador do núcleo de Estudos da Violência, da USP.
Maria Isabel Leme, do mesmo núcleo, complementa: “criminalizar crianças e jovens não vai lhes ensinar a ser tolerantes e respeitosas simplesmente pelo medo de serem punidas. Isso incita ainda mais intolerância entre elas, que muitas vezes não têm noção da gravidade da prática”.
Conceito importado
O problema do bullying é antigo, mas ganhou maior atenção dos educadores há pouco mais de dez anos, com o caso dos assassinatos em Columbine. “Alguns anos atrás as ocorrências de bullying eram mais raras porque a educação era mais severa, mas o problema sempre existiu”, destaca Maria Isabel. Havia, no entanto, uma diferença de tratamentos dos pais, que costumavam culpar a criança pelas zombarias e agressões que sofria. É o famoso “apanhou na rua, vai apanhar em casa”. No Brasil, assimilar toda a teoria norte-americana não é uma boa saída. “A cultura brasileira é mais tolerante em relação ao escárnio. Para os americanos, primeiros a conceituar o bullying, o fracasso e os defeitos são culturalmente mais graves do que para nós, que levamos mais tranquilamente apelidos e brincadeiras”, diz Renato.
Isso pode dificultar a identificação do bullying. Muitas crianças se sentem incomodadas e acabam inseguras com medo de serem julgadas como “aquela que não sabe brincar”, o famoso “perde a linha fácil”. No entanto, o que separa o saudável da violência tem grande influência da duração da prática. “O bullying é algo sistemático. Tem ares de perseguição. É bem o que ocorre com o Bart, dos Simpsons, ou com o Chris, no seriado Todo Mundo Odeia o Chris”, exemplifica Renato. É acordar todo dia e, além de encarar as obrigações da escola, ter que aguentar dedos apontados para os defeitos e, não raro, ser agredido fisicamente. “O que ocorre é que muitas crianças não tem bem determinado esse limite entre brincadeiras e violência, tanto os praticantes, quanto as vítimas, destaca Maria Isabel.
Entre os muros da escola
Outra particularidade do bullying é ser algo típico do ambiente de ensino. De acordo com uma pesquisa de 2009 da ONG Plan, os casos estão concentrados em adolescentes de 11 a 15 anos e são mais frequentes no sétimo ano do ensino fundamental. No entanto, casos de homofobia, assédio no trabalho e pressões na família são às vezes tratados pela mídia e até por especialistas como sendo de bullying. Renato discorda dessa abordagem: “colocar tudo em um mesmo saco pode mascarar problemas graves como racismo e discriminação de gênero e sexualidade. É o que está ocorrendo com o caso de Realengo. Wellington já ganhou o carimbo da esquizofrenia e da vítima de bullying sem a menor precisão, tudo muito sensacionalista”.
E se engana quem pensa que a prática é mais comum onde os níveis educacionais são mais precários. Dados do IBGE, de 2009, mostram que ocorrências foram mais registradas em escolas privadas, com 35,9% do total, enquanto nas públicas os casos atingiram 29,5% dos estudantes. Para entender isso, vale retomar um dos dados da pesquisa da Plan, que mostra que uma das causas do bullying é a vítima possuir bens de consumo com maior status do que o resto da turma, atitude mais típica do ambiente privado.
Em universidades, as agressões sistemáticas são menos frequentes, pois as turmas são menores e formada por adultos com interesses parecidos. Assim, professores conhecem melhor os alunos e eles mesmos costumam segregar quem pratica bullying, pois muitos passaram a vida escolar toda sendo vítimas ou com medo de virarem caso se manifestassem. “No entanto ainda falta muito para a universidade ser palco da tolerância. O caso Geisy Arruda e os inúmeros casos de homofobia, agressões em campeonatos esportivos e tantas outras demonstrações de preconceito, às vezes por parte dos próprios professores, podem acontecer nos mais renomados espaços acadêmicos e, apesar de nem sempre serem bullying, precisam ser discutidas”, de acordo com Renato.
Os motivos mais citados pelos agressores na pesquisa da Plan foram traço físico marcante da vítima, algum tipo de necessidade especial e uso de roupas diferentes. Assim, o tratamento que os praticantes de bullying sofreriam sendo criminalizados não funciona para atacar essas causas, que envolvem educação escolar e familiar. “Isso é claramente um problema de não saber conviver com o outro, não ter essa noção de respeitar a diferença. Na maioria das escolas, não se conhece o aluno, as salas são cheias e as disciplinas muito fragmentadas entre diferentes professores. Os alunos são muitas vezes tratados como números. Essa educação de falta de contato é a maior causa do bullying”, explica Maria Isabel.
O Núcleo de Estudos da Violência da USP, cujo foco é promover pesquisas e atividades voltadas à promoção e proteção dos direitos humanos. Maria Isabel Leme e Renato Alves pesquisam conflitos interpessoais entre crianças e adolescentes desde 1998.
Fonte: Jornal do Campus USP
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