Por Marta Martins Silva
Vista de fora, a vida de Nelson assemelhava-se à de tantos outros adolescentes. Gostava de ler ‘Astérix e Obélix’. Tinha uma namorada e no irmão mais novo o grande parceiro de brincadeiras. Andava nos escuteiros. Ia à escola, tinha telemóvel e computador. Mas há precisamente 22 meses, Nelson Domingos Fernandes Antunes, então com 15 anos, resolveu acabar com a vida. Com a tal vida que parecia normal vista de fora, mas que vista de dentro era tão sombria que achou mais fácil terminar com ela do que a enfrentar. "Não aguentava mais", escreveu Nelson em duas cartas, antes de se enforcar, a 11 de janeiro de 2014, numa madrugada fria que mudou para sempre o mundo da família de cinco, residente na freguesia de Adaúfe, em Braga.
O que não aguentava mais – as peças foram aparecendo e encaixando – era ser vítima de bullying, um estrangeirismo para a violência escolar, que a nível mundial se estima que afete uma em cada três crianças com idades entre os 13 e os 15 anos.
Vítima silenciosa
"Eu não compreendi o meu filho, tanto que em dezembro eu perguntei se estava tudo bem com a escola e ele disse "isto daqui a pouco também acaba e eu também mudo a escola", mas eu não soube ler nas entrelinhas. Essa frase foi um pedido de ajuda mas eu, como mãe, não consegui perceber. Eu só soube o que se passava na escola depois", lamenta Lúcia Fernandes.
Foi depois de Nelson morrer que a mãe soube que o filho era constantemente agredido. Ameaçado. Obrigado a comer dos caixotes do lixo. Expulso do autocarro e gozado por ter de fazer 10 quilómetros a pé até casa, onde chegava exausto e triste mas sem coragem para contar à família o que tinha acontecido. Dois dias antes da tragédia, Nelson foi despido no recreio. "Pontapeado, cuspido, humilhado na sua nudez", conta a advogada Arminda Melo. "E quando o despiram, desapareceu também o telemóvel que a mãe lhe tinha dado no Natal com muito esforço. Alguém vendeu um telemóvel ao Nelson por cinco euros, mas pouco depois ligaram-lhe a acusá-lo de o ter roubado e a dizer que ia pagar por isso. Ele não conseguiu lidar com isso", continua a advogada da família. Esse telemóvel nunca apareceu. "E a escola [EB 2,3 de Palmeira], que me chegou a ligar a dizer que o Nelson tinha dito um palavrão ou era irrequieto, nunca me telefonou a contar os maus-tratos de que o meu filho era vítima. Mas se ‘a’ sabia, se ‘b’ sabia, se ‘c’ sabia, tinham tempo para pegar no telefone e dizer "o seu filho foi maltratado por ‘a’, ‘b’ ou ‘c’". É essa a minha revolta maior. Só depois de o processo sair é que ‘a’ abriu a boca, ‘b’ abriu a boca, ‘c’ abriu a boca."
Já era tarde para trazer de volta Nelson, mas Arminda Melo quis fazer-lhe justiça. À procura de uma condenação para este caso, reuniu testemunhos relevantes mas deparou-se com muitos bloqueios ao processo no caminho. "A escola esteve sempre a tentar ocultar todas as informações possíveis e a comissão que estava a fazer o inquérito ia-nos dando algumas peças soltas, mas nunca nos dizia muito bem o que estava a fazer. Havia declarações dos próprios miúdos nos autos a dizer o que tinham feito ao Nelson, o que despiu, o que o chamava burro, uma menina que o ameaçou e ele teve de recorrer à ajuda do professor de educação física, mas nenhum quis depor em tribunal. Como se tratava de menores de 16 anos, tinha que decorrer no tribunal de família, era um processo tutelar educativo, mas este processo foi arquivado recentemente", o que não surpreendeu a advogada apesar de todos os seus esforços. "Porque se me perguntar a mim se eu posso apontar um culpado, eu não posso apontar um culpado e terá sido isto que foi ponderado pelos tribunais. Porque toda a gente foi responsável ou corresponsável, nomeadamente a escola porque tinha o dever de vigilância e não o fez, nomeadamente os médicos [Nelson era hiperativo e por isso era acompanhado] que estiveram em contacto com o Nelson, que o medicaram, que inclusive terão sido os únicos a quem o Nelson disse que era vítima de maus-tratos pelos colegas da escola e não alertaram a comissão de proteção de menores, não alertaram o tribunal, não alertaram a família. Toda a gente fechou os olhos. Falei com pais que tinham os filhos a estudar nesta escola e que me disseram "o meu filho contou isto, isto e isto, mas o meu filho não vai depor e o que eu lhe estou a dizer aqui, fica aqui". Portanto o material de prova que nós tínhamos era muito curto, era muito pequeno", lamenta.
"Ser pobre se calhar era um motivo, mas também há crianças ricas vítimas de bullying. Por não andar com roupas de marca? Mas há crianças com roupas de marca que são vítimas de bullying. Por ele ser calado e levar a vida numa brincadeira? Isso sim. E o silêncio, o maior aliado do bullying é o silencio. Os agressores dele sabiam que ele não ia falar. Todas as vezes que ele ia pedir ajuda, nunca lhe era dada essa ajuda na escola. Porque está no processo que ele por várias vezes foi pedir ajuda às funcionárias, à diretora de turma. E isso nunca me foi relatado. Eu nunca faltei a uma reunião do meu filho. Eu como mãe errei muitas vezes porque passava muito tempo fora de casa, tinha de pôr comida na mesa para os meus filhos, mas sempre me preocupei com eles", diz Lúcia.
Na altura da morte de Nelson, vozes houve que se voltaram contra a mãe. Foi recuperado um processo antigo da Comissão de Proteção de Menores, em que as condições de vida da família foram investigadas. "Houve uma denúncia anónima por causa do meu filho ser hiperativo, mas o caso foi arquivado por falta de provas. Paguei várias consultas do meu bolso, com dinheiro que pedia emprestado aos meus irmãos e às minhas patroas, em vários especialistas. Podia não ter sapatilhas de marca, mas tinha sempre comida na mesa, isso nunca lhe faltou."
Mundo ao contrário
Desde que Nelson morreu, o irmão mais novo, Miguel, de dez anos, nunca mais quis andar de baloiço. "Há certas coisas que eles faziam os dois e ele agora não faz, não toca. Ele adora andar de bicicleta e agora não consegue. Falta- -lhe o parceiro de corrida. Também já me disse para eu tirar o baloiço, que não está aqui a fazer nada. Às vezes dou com ele a falar com o irmão, a dizer "Hoje ganhei o futebol, tu ajudaste-me; Oh mano, diz lá tu agora aí em cima, já tens uma boa casa?, um bom carro?, já és capitão de uma equipa?", foi a forma que ele encontrou de lidar com isto." A morte de Nelson deixou marcas profundas em toda a família. O quarto onde dormia continua tal e qual como no dia em que de lá saiu pela última vez – está fechado e ninguém nunca mais lá entrou. A irmã mais velha fechou-se no seu próprio mundo. O casamento dos pais tremeu e não se sabe se alguma vez recuperará do abalo. O pai continua emigrado em Gibraltar, onde trabalha como carpinteiro, mas não tem vindo à casa empoleirada na encosta onde Nelson e os irmãos toda a vida correram, antes da palavra ‘morte’ e da palavra ‘bullying’ entrarem na vida da família. Têm todos, cada um à sua maneira, tentado reerguer-se. Nestes 22 meses que passaram desde a morte do filho, Lúcia, empregada de limpeza, terminou o nono ano e sonha chegar à universidade e ao curso de enfermagem. É voz ativa numa associação recém-constituída – criada por um investigador da Universidade do Minho – que pretende fazer a ponte entre alunos, escolas e pais de vítimas e agressores. A associação tem dois rostos: o de Nelson e o de Leandro, o menino de 12 anos que em 2010 desapareceu nas águas do rio Tua, em Mirandela, depois de alegadamente ter sido agredido por colegas no recinto da escola. Antes de se atirar ao rio, Leandro despiu-se e colocou a roupa e as sapatilhas sobre a mesa de um parque de merendas, caminhou até à margem e só depois deixou o blusão. O caso foi arquivado e um inquérito do Ministério da Educação ilibou a escola de responsabilidade. Para a advogada Arminda Melo, "se o bullying fosse crime, à semelhança da violência doméstica, todos teríamos a obrigação de denunciar estes casos. Não podíamos continuar a nossa vida e fingir que não vimos o sofrimento no rosto destas crianças".
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