Portal Sact Caroline Monteiro /Prof. orientador Cláudio Toldo (SC0640JP)
Antes e depois, isso pode não representar nada há muitas pessoas, mas para Luciana Gonçalves Barbosa é tudo. Com apenas 12 anos, ela já passou por vários momentos difíceis. Há tempos sofria bullying por ter orelhas em abano.
“Na escola, me chamavam muito de orelhuda. Quando chegava em casa, eu falava para a minha mãe do que tinham me chamado, que não me sentia bem, que o coração estava cortado”, relata a menina.
Como muitas coisas na vida, a solução surge quando menos esperamos e de pessoas que não esperamos. Foi no fim do ano passado que Luciana soube do projeto Beleza é Ser Solidário, realizado pelo cirurgião plástico Luciano Schutz, que tem como objetivo realizar cirurgias para corrigir orelhas em abanos de estudantes do Bairro da Juventude.
“Eu queria fazer porque eu sofria muito bullying e porque queria ficar mais bonita, andar mais com o cabelo preso. Primeiro, falei para a minha mãe que estavam fazendo essa cirurgia, depois passou na televisão. Ela ligou, disse que eu queria fazer e marcaram. Eu fiquei nervosa na hora da cirurgia e chorei. Quando me olho no espelho sinto muita diferença. Eu tenho o antes e o depois. A minha mãe e a minha família ficaram felizes por eu ter feito e pelo Dr. Luciano fazer isso para as crianças. Quem fazia bullying não faz mais, eles veem e não falam mais”, destaca Luciana.
Ana Carolina (à esquerda) aguarda a cirurgia que Luciana (à direita) já realizou. Foto: Caroline Monteiro.
Depois de superar essa barreira, a estudante incentivou outros colegas, como a Ana Carolina de Candia Lacerda, de 10 anos. Ana já está com a cirurgia marcada e conta os dias para a realização.
“Eu soube, quis fazer e contei para minha mãe. Ela disse que quando fosse marcar eu poderia fazer, então ela ligou para o Bairro. Às vezes, eu sofro bullying. Estou muito nervosa e ansiosa, ansiosa para ver como eu vou ficar”, afirma Ana, com sorriso no rosto.
A atendente de ambulatório Carla Gomes dos Santos explica que a mãe de Ana Carolina ligou e conversou para iniciar o processo para realização da cirurgia. Carla é responsável por realizar todo o intermédio com a família e acompanhar todo o processo.
“Os pais entram em contato comigo, eu faço todo o processo para eles. Uma hora antes da cirurgia, eu chego no hospital para dar ajuda na internação. Nas últimas vezes, eu participei da cirurgia, porque as crianças se sentem mais seguras”, ressalta a atendente.
Início do projeto
Conforme a assistente social e coordenadora de Assistência Social do Bairro da Juventude, Daiane Bento, Schutz procurou a instituição e apresentou o projeto; e, logo em seguida, começaram a fazer um levantamento seguindo os desejos de cada criança. O diferencial do projeto realizado pelo cirurgião plástico é que tudo é feito de forma gratuita.
“Até então, a gente não tinha dimensão do quanto seria bacana, inovador e que trouxesse tanta felicidade para as crianças, porque ainda era um projeto novo, não sabíamos muito bem o que ia acontecer. Foi então que, nas primeiras cirurgias, a Carla voltou emocionada, muito feliz. Foi um atendimento de primeira, toda a estrutura do hospital mobilizada, as crianças foram super bem atendidas, foi bem legal o atendimento à família que estava acompanhando”, frisa a coordenadora.
Com início em outubro de 2015, o projeto já atendeu quase 20 crianças e será mantido enquanto houver demanda. Segundo Daiane, não se pode dizer para os estudantes que eles precisam fazer a cirurgia, mas sim esperar que eles manifestem a vontade de realizar.
“Começamos a perceber nas crianças a melhora na autoestima. A criança que tinha medo se encorajou naquele que já tinha feito e começaram a nos procurar. Percebemos a mudança nas meninas já pelo penteado. Vemos que os cabelos estão mais soltos, que elas perderam mais a timidez. E as brincadeirinhas que sofriam não acontece mais. Um dia, eu acompanhei no refeitório as crianças que tinham se inscrito e percebi que eles ganhavam tapinhas nas orelhas ou estavam de gorro, as meninas de cabelos soltos e outros fazendo brincadeiras. Os apelidos da minha época ainda permanecem”, lamenta.
A coordenadora de Assistência Social, Daiane (à esquerda), e a atendente de ambulário Carla com as alunas Ana Carolina e Luciana. Foto: Caroline Monteiro.
Pode ser coincidência ou destino, a coordenadora conta que o projeto surgiu em um momento que uma estudante da instituição necessitava da cirurgia, já tinha apresentado vontade em realizar, mas o pai não estava conseguindo levantar os recursos.
“O Bairro tem uma energia bastante positiva. Ficamos bem felizes em sermos lembrados, mas porque também sabemos que aqui tem um universo de crianças com diferentes necessidades. Recebemos todos os projetos de forma muita aberta, porque são oportunidades que vão além do nosso alcance”, enfatiza Daiane.
Trabalho social e bullying na infância
Médico no Hospital Universitário (HU) de Florianópolis, Schutz sempre esteve ligado a área social e desejava retribuir a população de alguma forma pela oportunidade que teve de estudar em uma universidade pública.
“A minha formação como cirurgião plástico foi no HU, que só atende pacientes pelo SUS. Então, eu sempre fui envolvido em tudo que fiz para pessoas mais carentes. Apesar de me envolver nessa atividade social quase intrinsicamente pela própria atividade da residência médica, eu sempre pensei: ‘a sociedade me deu essa oportunidade de fazer uma formação de maneira gratuita em uma instituição pública’, então, de certa maneira, já me sentia “devolvendo” um pouco disso quando estava operando pessoas com câncer, deformidades, etc”, lembra.
“Saí do HU e passei a trabalhar de forma privada. Então senti aquela vontade de dar um retorno à sociedade que de alguma maneira contribuiu para que eu tivesse o que tenho hoje, tanto o sucesso profissional quanto pessoal. Sempre existiu dentro de mim esse espírito de me envolver em algo social”, salienta.
Quando se mudou para Criciúma, algumas ideias surgiram e o cirurgião tentou buscar parcerias com a Prefeitura. O objetivo era envolver a sociedade, principalmente os mais carentes, em algum projeto. Mas por questões burocráticas e financeiras, já que há despesas, nada aconteceu.
Mesmo sem conseguir realizar o projeto com a Prefeitura, Schutz não desistiu. Sem conhecer pessoalmente o Bairro da Juventude, no início acreditava ser um bairro da cidade. Ouviu muitos amigos dizerem que deveria ir à instituição e conhecer o trabalho realizado. Foi nesse momento que o cirurgião foi até o Bairro e ficou encantado.
“O fato de ser orelha em abano tem um pouco a ver, porque eu já sofri essa espécie de bullying quando era pequeno, porque eu também tinha orelha em abano e fui operar só quando era adulto. Eu sabia do sofrimento das crianças e posso ajudar esse público que já está lá por fragilidade econômica e social, pessoas que não teriam condições de fazer isso em um ambiente privado”, acrescenta.
De acordo com o cirurgião, esse é um projeto diferente dos outros realizados no Bairro da Juventude, porque cuida da autoestima das crianças. O sucesso do Beleza é Ser Solidário surpreendeu e superou as expectativas depois que perceberam as reações e mudanças nas vidas dos participantes.
“Quando eu fui em um programa de rádio, o pai da primeira criança operada começou a fazer uma declaração ao vivo de tirar lágrimas. Do que foi o processo de descobrir o que a filha dele sofria, como era, como mudou isso. Aquilo me deixou sem folego, pensei: ‘nossa, eu sou responsável por isso?’. Ali vemos a importância e como aquilo afeta a vida não só da criança, mas da família inteira”, destaca.
O projeto é uma parceria entre o cirurgião plástico, o Hospital Unimed, responsável pela estrutura e realização de exames, e o Lions Clube, que fornece os medicamentos pós-operatórios.
A cirurgia e pós-operatório
Simples e rápida, as cirurgias são realizadas geralmente nas sextas-feiras no Hospital da Unimed. Em média, quatro crianças são operadas mensalmente. O processo inicia com a anestesia geral e dura aproximadamente de 30 a 40 minutos. A princípio todos os alunos do Bairro da Juventude podem participar, porém o procedimento só pode ser feito a partir dos seis anos de idade. Dentre outros requisitos, é necessário que as crianças mostrem interesse.
“As crianças têm que manifestar vontade, porque algumas têm a orelhinha um pouco mais aberta, mas não se incomodam com isso. Tirando a vontade, tem uma equipe própria do Bairro que percebe alunos que sofrem bullying, sentem-se acuados. Se o professor percebe, ele pode indicar isso a psicóloga e assistente social que fazem o contato com a família, toda uma conversa para não criar algo que não existe. Mas, hoje, já vimos que entre as crianças isso é fantástico. Nos pátios, recreios, nas conversas, já falam para o colega: ‘Se fosse você, faria; eu fiz e é uma beleza. Estou feliz da vida’”, enfatiza Schutz.
Assim que fazem uma lista de interessados, o Bairro encaminha ao cirurgião, que uma vez ao mês realiza uma visita. Primeiramente, ele conversa apenas com as crianças, explica o que é e como é feito e consegue identificar aquelas que realmente desejam fazer a cirurgia. Conforme Schutz, aquelas que apresentam interesse já agendam o procedimento e é realizada uma reunião com os pais para explicar o que se pretende, quais os riscos, como é o pré e pós-operatório.
“É feita uma anestesia geral nas crianças abaixo de 16 anos. Fazemos uma incisão na parte de traz da orelha, com isso acessamos a cartilagem que é o que dá a posição dela e remodelamos na posição correta. A pele é tão fina que é quase impossível ver cicatriz. Na reunião com os pais, eu já explico que deverá ser feita uma avaliação com anestesista, que tudo é verificado antes, se for preciso será feito mais algum exame. Depois da cirurgia, eu vou ao Bairro para avaliar as crianças. Se eventualmente precisar de alguma assistência, nós damos. A orientação é que nos primeiros 45 dias elas não façam atividades físicas coletivas, como jogar futebol”, afirma.
Se todo o processo (consulta, exames, anestesista e cirurgia) fosse realizado de forma particular e não pelo projeto custaria em torno de R$ 6 mil. O cirurgião esclarece que orelhas em abano é uma característica genética, não uma doença; e que a única maneira de corrigir é através da cirurgia.
“Nas reuniões, podem ter mães que pensam que os filhos estão assim porque não cuidaram direito quando pequeno. Não tem nada a ver, já nasce assim. Se a mãe percebe isso quando a crianças ainda é pequena, não adianta ficar prendendo com fitinha, faixas, porque não vai mudar. Orelhas em abano não causam problemas físicos ou auditivos, apenas estéticos. Uma pessoa que viveu toda a juventude com a orelha em abano e depois de adulto resolve fazer a cirurgia apenas por estética, muitas vezes não se importa com aquilo, mas com as crianças é mais complexo porque existe o bullying”, enfatiza Schutz.
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