ILUSTRAÇÃO ALEX GOZBLAU
É uma violência feita à distância, mas como se se estivesse perto. Todos os dias, a todas as horas, com milhões a assistir.
CAROLINA REIS (TEXTO), ALEX GOZBLAU (ILUSTRAÇÃO)
O medo tinha hora marcada. Começava e terminava com a campainha da escola. Adriana sabia que era ali que a paralisia facial mais se notava. Durante dez anos aguentou sozinha os comentários de gozo feitos em todas as aulas, os empurrões e insultos durante os intervalos. Não lhe valeu o irmão, que assistia a tudo ali mesmo ao pé e que, também com medo, ficava em silêncio. De certa forma, ela fez o mesmo. Aguentou até ter coragem para contar à mãe o que se passava. A vida desta família alentejana já se encaminhava para rumar mais a sul, o bullying foi a gota de água.
Adriana mudou de cidade, fez terapia, cresceu, recuperou das mazelas. Sentiu-se “curada”. Mas, dez anos depois da primeira vez em que os miúdos da escola a rodearam para lhe cuspir e gritar que ela era “feia, pequena, deficiente, um verme” que não merecia viver, os insultos voltaram. Agora, não existiam círculos no recreio, nem aparecia ninguém, de repente, para lhe dar uma palmada na cabeça, nem lhe roubavam a roupa depois do treino de educação física. Os insultos e ameaças chegavam através do Facebook e do telemóvel, constantemente. Ali, sem ver a cara dos agressores, ela voltava a ser “feia, pequena, deficiente, um verme” que não merecia viver. Como se nunca tivesse saído da primeira escola onde o assédio começou.
Adriana, 15 anos, passava de vítima de bullying a vítima de cyberbullying. Ironia das ironias, porque denunciou o que sofreu em pequena. Numa manhã nublada — de um dia do qual nunca se vai esquecer —, esperou que a família saísse de casa e sentou-se em frente ao computador. Pegou numas folhas brancas e numa caneta de feltro, escreveu e ligou a câmara. Um sorriso. E, novamente em silêncio, começou a mostrar o texto escrito nas folhas brancas. “Olá, eu sou a Adriana :-) Tenho 15 anos, quase 16. Vim do Alentejo. Alguma vez sentiste necessidade de contar um dos teus maiores segredos? Bem, eu sinto isso há algum tempo. Só preciso de alguns minutos da tua fantástica vida de adolescente. Desde os 5 anos que sou vítima de bullying. Parece simples, não é? Era gozada por ter a boca de lado, devido a uma paralisia facial. Diziam que eu era pequena, feia, deficiente, que nunca devia ter nascido. Imaginas como me senti? Era tão fraca... Tão ingénua e inocente. No 7º ano tudo piorou, quando tive uma segunda paralisia e a minha cara ficou pior, pois é raro ter duas na minha idade. Sofri calada. Chegava a casa cheia de dores, com dores nos olhos. Sentia-me uma merda. Então, culpei-me a mim própria. Estava farta de sofrer, de ser fraca. Por isso, tentei acabar comigo. Morrer. Simplesmente morrer. Tenho marcas que por mais que tente não vão desaparecer, nem o facto de ter sofrido tanto. Pareço feliz, mas uma parte de mim ainda acha que não sou o suficiente para o mundo. Hoje estou a viver em Portimão. Já não sou vítima de bullying. Passaram 14 anos de sofrimento. Sozinha. Mesmo assim, há quem ainda tente deitar-me abaixo. Mas eu concretizei um sonho: ser forte.”
O pior de uma vida tão curta estava descrito sem voz, entre sorrisos e lágrimas, em três minutos de vídeo. E nele uma mensagem de esperança: “A vida ensina-te a ser forte da pior forma”, o título que Adriana deu ao filme. Nos primeiros dias recebeu vídeos de resposta, felicitações, viu adolescentes da mesma idade partilharem a sua história recorrendo também a folhas brancas e canetas de feltro. Iniciava-se, porém, um ciclo diferente do que estava à espera. Os agressores, que durante tantos anos a intimidaram e perseguiram, viram o vídeo e responderam com a agressividade e maldade a que a tinham habituado. Desta vez, a quilómetros de distância, mas como se estivessem muito perto. O que era para ser um momento de catarse, o de pôr um ponto final num período negro, tornava-se, afinal, no começo de outro.
O medo deixava de ter hora marcada. Em perfis falsos, diziam que a culpa era dela, que era calada e, por isso, não tinha amigos. Chamaram-lhe nomes, prometeram que não a iam deixar em paz. No anonimato e graças à desregulação da internet, Adriana sentia-se uma presa fácil. “Era como se fosse a continuação de tudo o que tinha passado. Mas não conseguia ver a pessoa cara a cara. Era humilhada perante um público maior. Pensava em quantas pessoas estavam a ver aquilo!” Post atrás de post. Todos os dias, a todas as horas. Tanta gente a ver e ninguém a podia proteger. Ninguém a podia levar dali para fora, porque a internet é omnipresente. Mesmo que saísse de todas as redes sociais, sabia que continuariam a fazer o mesmo. “Tanto o bullying como o cyberbullying são formas de assédio. O bullying é direto com a vítima. O cyberbullying é um assédio virtual que usa vários meios de comunicação (como o telemóvel e as redes sociais) de uma forma repetida. O bullying é físico, deixa mais visibilidade. O cyberbullying é uma forma continuada e repetida de vitimização. Deixa mais sequelas, dura mais tempo”, explica Daniel Cotrim, psicólogo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
Adriana sentiu-se sentada no escuro, como se não conseguisse ter uma vida diferente. Maria Ana esteve três anos sentada nesse lugar escuro. Nunca foi uma miúda popular na escola, mas as regras apertadas do colégio católico em que estudava não davam espaço para ninguém pisar o risco. Um dia, chegou a casa e abriu o e-mail. Lá dentro, um link encaminhava-a para um blogue que lhe era dedicado. Uma fotografia sua, tirada à revelia, com a cintura das calças descaída a mostrar o rabo, abria o blogue. Meia dúzia de posts apontavam-lhe os ‘defeitos’. Um vídeo mostrava vários alunos populares da turma a dizer como ela era chata e detestável. “Comecei a arranjar desculpas para faltar às aulas. Deixava de dormir para estar constantemente a ver se havia atualizações no blogue. Isolei-me, por não ter a certeza de quem tinha sido a ideia. Era como se estivessem todos envolvidos. E perdi a segurança.” Enquanto na escola algum adulto a podia ver e defender, não havia ninguém a quem se queixar na blogosfera.
“Muitas vezes, em casos de bullying, há grupos onde os jovens se sentem seguros. Por exemplo, o bullying pode ocorrer na sala de aulas, mas não na equipa de futebol da escola. Aqui não há fronteiras nem de tempo nem de espaço”, sublinha Ivone Patrão, docente e psicóloga da clínica do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA). Adriana sabe bem o que é ficar sozinha — com o cyberbullying, deixou de ter um lugar seguro. Ela denunciava uma conta de Facebook e dois segundos depois aparecia outra. Ela bloqueava um ‘amigo’ e esse mesmo, mas com outro nome, voltava a pedir-lhe amizade. Ela desamigava outros amigos, mas os vídeos ameaçadores e de gozo voltavam a aparecer no seu feed. E milhares — milhões mesmo? — a ver, a partilhar. E ela a desconfiar, mas sem ter a certeza de quem estava por trás.
HUMILHAÇÃO UNIVERSAL
A visibilidade universal da internet torna-se a principal arma do agressor. Há mais gente a ver a humilhação, e ela pode acontecer onde quer que se esteja. Uma só pessoa pode criar várias contas para perseguir e insultar. “É uma questão de exposição, que ali ultrapassa os limites. A visibilidade faz com que outros problemas sejam acrescentados ao assédio, ao que seria o bullying, como o não querer ir às aulas, perturbações de sono, porque ficam até mais tarde na internet a ver o que os outros dizem sobre eles. Traz uma série de efeitos que são ampliados”, explica Luís Fernandes, psicólogo. Autor de “Cyberbullying, Um Guia para Pais e Educadores” e atualmente a preparar um plano nacional de ação contra este tipo de assédio e agressão, está habituado a visitar escolas e a falar com alunos e educadores. E não tem encontrado jovens surpreendidos com a possibilidade de ameaçarem e perseguirem na internet, através de SMS, com vídeos e imagens e sem terem de mostrar a cara. “Dez a 20% dos jovens consideram-se agressores ou vítimas. E um dos problemas é o sexting (envio de fotografias de pessoas nuas ou em poses íntimas).”
Com a internet instalaram-se novas palavras, como sextorsion, chantagem que consiste em exigir favores sexuais para não divulgar fotos íntimas. Os jovens crescem cada vez mais depressa. Têm conta de Facebook e telemóveis ainda antes de entrarem na adolescência. Da mesma forma, também começam a descobrir cedo o corpo e a sexualidade. E, como nativos digitais que são, trocam fotografias íntimas com naturalidade. Luísa, 44 anos, descobriu este ano as nudes (as tais fotografias íntimas). A filha Leonor, 11 anos, andava com um comportamento diferente. Embora ela não tivesse dado importância, percebeu que algo se passava. O filho mais velho comentou que andavam alguns colegas a gozar com Leonor no Facebook. Foi aí que decidiu entrar no mundo da adolescência em que Leonor se movimentava.
A conversa entre mãe e filha não começou de forma pacífica. Leonor não se queixava abertamente nem tinha vergonha de ter tirado as fotografias. A princípio, Luísa pensou que eram imagens provocantes. Quando entrou na conta de Facebook da filha, depois de lhe tirar as passwords de todas as redes sociais, não estava à espera nem do conteúdo nem da facilidade com que se espalhava. “Num grupo chamado chamado Leonor Má apareciam fotos e vídeos da Leonor. Os miúdos não têm consciência do que estão a fazer.” Aquele grupo era embaraçoso, mas o pior estava na caixa de mensagens. Um amigo do namorado de Leonor ameaçava publicar as imagens mais explícitas se Leonor não tivesse relações sexuais com ele.
Em países como os EUA, onde surgiram as primeiras leis anticyberbullying, no Canadá e no Reino Unido há casos de jovens que se suicidaram por causa do cyberbullying. Quase todos tinham medo de que as suas fotografias e vídeos em poses íntimas fossem parar à internet. “Em Portugal também há casos de tentativas de suicídio. O problema não é só ser agredido, é toda a gente ver. Cada pessoa que vê pode enviar para 10 ou 15, que também vão ver... E isso vai contra a imagem que o jovem andou a construir”, diz Luís Fernandes.
NADA DESAPARECE DA INTERNET
O caso de Leonor é um exemplo típico das queixas de pais apresentadas na Polícia Judiciária (PJ). E, contado assim, parece um crime moderno que apenas existe porque há internet e redes sociais. Jorge Duque, ex-inspetor-chefe da área de criminalidade informática da PJ, anda quase 20 anos para trás no tempo para recordar um dos casos que mais o marcou. Uma menor, da área da Grande Lisboa, foi filmada a ter relações sexuais com o namorado sem ter conhecimento disso. O rapaz partilhou o vídeo com amigos no IRC (um antigo serviço de chat), e a comunidade da zona onde ela vivia ficou a saber. A jovem começou a faltar às aulas, e a família, envergonhada, mudou de localidade. Um ano mais tarde, alguém encontrou o vídeo e partilhou-o no Hi5, uma rede social prévia ao Facebook. “Os dados na internet não são privados. Não desaparecem. Temos situações bastante graves, como tentativas de suicídio”, alerta Jorge Duque.
Na maior parte das vezes, os pais descobrem o que se passa numa altura em que a situação parece incontrolável, já os menores passaram por humilhações e chantagens. Luís agiu assim que teve noção da gravidade do problema. Mal descobriu, tratou de guardar todas as conversas e foi à APAV pedir ajuda para apresentar queixa. Queria — e quer — que o caso seja julgado e os culpados penalizados, mas, mais do que isso, gostava que o assunto fosse debatido na escola de Leonor. “Depois de guardar as provas, fui à escola, quis falar com a presidente do Conselho Diretivo e com os pais do rapaz. Mas a escola não quis saber, disse que não se tinha passado dentro de portas e que, por isso, não tinha qualquer responsabilidade. Faz-me confusão que os pais não saibam, que não tenham noção do que se passa com os filhos, mas também que as escolas não se envolvam.”
Esta apatia escolar deve-se muito ao desconhecimento do que é o cyberbullying. Uma sondagem feita pela APAV, há cerca de três anos, mostrava que a maioria sabia que existia, porém não o conseguia identificar. Se para os pais o bullying é hoje um conceito compreendido, e para o qual estão mais despertos, o cyberbullying é-lhes ainda difícil de definir. Para os educadores, que são imigrantes digitais, não é linear perceber se as fotos e posts que os filhos publicam e que são publicados sobre eles são gozo ou brincadeira. E até os mais novos, numa fase da vida em que estão em formação, ficam na dúvida entre o que é ‘rir de mim’ ou ‘rir comigo’. “Há uma fronteira ténue entre o que é cyberbullying e o que é uma opinião. A linha é ténue, porque depende de fatores externos, da vida pessoal e da estabilidade de cada um. Mas há casos em que não há dúvidas: criar contas falsas nas redes sociais só para falar mal dos colegas é um deles”, diz Ivone Patrão.
A realidade é nova, mas as próprias redes sociais — as plataformas que permitem a disseminação do medo, do ódio e da agressão — já deram por ela. Primeiro foi o Instagram a aumentar a lista das palavras ofensivas, agora é o Twitter a expandir a opção “Silenciar”, para permitir que os utilizadores bloqueiem tweets que contenham determinadas palavras ou frases.
Os pais pedem ajuda no limite. Mas não basta dar um ralhete e cortar o acesso às redes sociais aos filhos. A diferença entre a maioria e Luísa é que ela tentou compreender o que fazia Leonor partilhar imagens daquelas. “Ela sempre foi muito vaidosa, sempre gostou muito de se fotografar. Aquelas foram mais umas fotografias, que são hoje muito comuns na escola”, conta. Em vez de entrar em pânico, e apesar do medo que também sentiu, encaminhou Leonor para uma psicóloga e ponderou mudar a filha de escola. Só que, se essa medida funciona numa situação de bullying, no cyberbullying não adianta. Este tipo de assédio é um “Big Brother”. Em 24 horas, esteja-se onde se estiver, pode ser-se vítima. Foi por isso que Adriana se sentiu mais no limite. Não havia por onde fugir.
Até há cinco anos, existia uma lista de cinco medidas para prevenir o cyberbullying. Uma delas dizia que o computador devia estar na sala, para ser usado em família. Outra dava dicas sobre os filtros que se deveriam usar para controlar o que os menores fazem online. Com os smartphones, as duas tornaram-se ultrapassadas. “Este é um mundo muito complexo. As famílias devem integrar as tecnologias nas suas vidas, de uma forma positiva, quando os filhos são pequenos, para eles poderem compreender”, frisa a psicóloga do ISPA. Já Jorge Duque alerta para a prematuridade com que pessoas ainda em estado imaturo se expõem a milhares. “Valerá a pena correr o risco de deixar os jovens terem uma conta numa rede social? A reprodução dos dados na internet funciona como bola de neve.” E é difícil encontrar a fonte da origem.
O anonimato da internet pode transformar-se num refúgio, tornando as vítimas de bullying em agressores de cyberbullying. É o reverso da moeda. Protegidos pela distância física e sem terem de mostrar o rosto, é comum que jovens que sejam perseguidos e ameaçados na escola usem as redes sociais para se vingarem. “Acontece muito, e assim continua o ciclo de violência. É por isso que é importante trabalhar com o agressor. Fazê-lo perceber que ele também pode ser visto como bom se estiver a fazer bem, trazê-lo para o outro lado”, sublinha Luís Fernandes. É que, se há sempre uma vítima e um agressor, isso não quer dizer que sejam bons ou maus. Enquanto a violência existir, o medo terá sempre hora marcada.
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 3 de dezembro de 2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário