**Se todas as condutas configuradoras do bullying
já se encontram tipificadas nas leis penais brasileiras, qual seria o
interesse em tipificá-lo autonomamente, tal como previsto no projeto de
Reforma do Código Penal?
Convém, desde logo, esclarecer o seguinte: a tipificação do bullying não
constitui uma neocriminalização própria, porque tudo que configura esse
fenômeno delitivo (ofensas, lesões, subtrações, constrangimentos,
ameaças etc.) (verdadeiramente tudo) já está tipificado nas leis penais
brasileiras vigentes. Não estamos diante de uma neocriminalização que
está criando ex novo um distinto conteúdo de injusto.
A rigor, portanto, seria
desnecessária essa neocriminalização imprópria. Algumas razões, no
entanto, poderiam servir de apoio para a iniciativa: (a) hoje são muitos
os tipos penais que cuidam do tema; a sua sistematização pode ser
benéfica; (b) quanto mais tipificação, mais o juiz tende a impor uma
medida mais dura do ECA; (c) as coisas devem ser chamadas pelo seu nome;
(d) todos os fatos constitutivos do bullying ficarão
absorvidos, havendo-se imputação única; (e) todos os programas
governamentais ou não governamentais, destinados à prevenção do bullying, poderão ter destinatário certo etc.
Como se vê, a neotipificação é muito
mais uma questão técnica e sistemática que material (substancial).
Mesmo sem a tipificação citada não há que se falar em insuficiência de
proteção do bem jurídico. Há tipos penais suficientes para cobrir todo o
espectro do fenômeno.
De qualquer maneira, uma coisa é
certa: a interdisciplinaridade, multifacetariedade e multifatoriedade
que envolvem o fenômeno do bullying ensinam que ele não deve
ser considerado ou combatido com a ferramenta penal, sim, com medidas,
ações e planos preventivos. É muito provável que ninguém tenha imaginado
que a sua tipificação penal (imprópria, puramente técnica) tenha
qualquer tipo de novel eficácia na prevenção do fenômeno (o que não
significa que a pena, consoante o pensamento da Escola clássica, não
tenha nenhum tipo de efeito preventivo dissuasório). Não se previne o bullying com uma tipificação imprópria, sim, com programas efetivos que devem ser contextualizados (respeitar cada realidade).
De acordo com a inovação, o bullying,
com a denominação de “intimidação vexatória”, passaria a constituir o
parágrafo segundo do artigo 147, do Código Penal, conforme segue:
Ameaça
Art. 147.
(…)
Intimidação vexatória
§2º Intimidar, constranger, ameaçar,
assediar sexualmente, ofender, castigar, agredir, segregar a criança ou
o adolescente, de forma intencional e reiterada, direta ou
indiretamente, por qualquer meio, valendo-se de pretensa situação de
superioridade e causando sofrimento físico, psicológico ou dano
patrimonial.
Pena – prisão de um a quatro anos.
O bullying veio à tona na Comissão de Reforma do CP em razão da sua utilidade conceitual, peculiaridades e gravidade. O fenômeno bullying, analisado
dentro do contexto escolar, não configura uma violência qualquer, visto
que compreende atitudes agressivas de todas as formas, praticadas de
forma intencional e repetida, sem motivação evidente, adotadas por um ou
mais indivíduos contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas
dentro de uma relação de desigual poder.
O que diferencia o bullying
escolar de outros conflitos ou desavenças pontuais é seu caráter
repetitivo, sistemático, doloroso e intencional de agredir (verbal,
física, moral, sexual, virtual ou psicologicamente) alguém, notoriamente
mais vulnerável, evidenciando um desequilíbrio de força (poder e
dominação) entre os envolvidos.
Desta forma, trata-se de uma
subcategoria de violência bem específica que abrange muito mais do que
desentendimentos cotidianos escolares e problemas estudantis. O bullying representa um verdadeiro processo maléfico aos envolvidos, podendo, inclusive, ser fatal.
Diante de tais características, a Comissão incluiu a figura do bullying
como novo tipo penal, sob a justificativa de que a neocriminalização do
fenômeno garantirá maior sistematização e tecnicidade ao assunto.
Em razão do estrangeirismo da expressão, e da ausência (quase total) de estudos sobre o tema no Brasil, o conceito de bullying
é constantemente deturpado ou banalizado no país, sendo reduzido,
muitas vezes, a meras brincadeiras ou agressões pontuais de crianças e
adolescentes.
Basta mencionar que 60% das matérias
divulgadas na internet e passíveis de localização pelo canal de busca
“Google” do Brasil com o nome bullying não expressam, nem representam, de fato, casos de bullying, de acordo com a pesquisa realizada pela educadora e especialista no assunto Cléo Fante.
Ou seja, o conceito de bullying,
suas peculiaridades, bem como a gravidade do fenômeno são absolutamente
desconhecidos pela população brasileira. No entanto, a inclusão do bullying como tipo penal não significa qualquer tipo solução para o problema, que é extremamente complexo.
O enfrentamento e o combate ao fenômeno do bullying demandam, prioritariamente, ações e programas preventivos (chamados de anti-bullying)
desenvolvidos e direcionados especificamente para cada estabelecimento
de ensino, atendendo às particularidades de cada comunidade escolar (ou
seja, todos os envolvidos direta ou indiretamente no fenômeno). É o
exemplo do Bully Free Program (programa preventivo americano) e Olweus Bullying Prevention Program Overview (programa preventivo norueguês).
A efetividade destes programas ficou comprovada pelos números que as escolas piloto apresentaram: redução de 26% nos casos de bullying, quando aplicado o programa da OBPP (Olweus Bullying Prevention Program Overview) e 20,2%, nos casos nas das escolas que utilizaram o Bully Free Program.
Desta forma, embora o escopo da criminalização seja conferir ao bullying
a devida tecnicidade e sistematização, chamando atenção para a
relevância do tema, esta iniciativa não pode e não deve ser enfocada
isoladamente. Por se tratar de questão absolutamente interdisciplinar
(comum a diversas disciplinas), o fenômeno deve extrapolar o âmbito
jurídico e ser amparado por medidas de outras esferas, como a psicologia
e a pedagogia, por exemplo. Mesmo porque, a neocriminalização do bullying não atingirá as causas desencadeadoras do evento agressivo, mas tão-somente suas consequências.
A iniciativa é bem vinda se com ela não emergir a crença de que a neotipificação penal se traduz em solução para o combate ao bullying.
Interpretar as mudanças e inovações legislativas como atalho (caminho
mais rápido) para a “solução” do problema é renegar a própria
complexidade do tema.
*LFG – Jurista e cientista criminal.
Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e
do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983),
Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas
redes sociais: www.professorlfg.com.br.
** Colaborou Natália Macedo Sanzovo –
Advogada, Pós Graduanda em Ciências Penais, Coordenadora e Pesquisadora
do Instituto Avante Brasil.
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