segunda-feira, 21 de agosto de 2017

A receita para ser feliz é não pensar muito

No início, era a escuridão. Agora, nem sei. Alguém, por favor, acende uma luz. Nunca passei fome. Nunca passei frio. Nunca me passou pela cabeça ser feliz sozinho. Não foi a minha cachola que arrancaram em Pedrinhas. Ninguém da cadeia fez um gol de placa com o meu crânio triste. A não ser pelo pênis minúsculo em riste e pelo complexo de inferioridade na escala animal, não sofro de deformidades. Para a idade, nenhum indício de que morrerei de repente. Não padeço de uma moléstia rara, crônico-degenerativa, que vai me matar aos pouquinhos. Vá com calma, não tenho pressa em gozar. Escapei de bullying. Escapei de linchamento. Escapei do alistamento militar obrigatório. Não perdi um filho na guerra. Acho uma perda de tempo eu me matar por aí. Caí na malha-fina, mas foi um engano. A receita para ser feliz é fazer cócegas no próprio sovaco. É um privilégio que os meus pais permaneçam vivos. Jamais matei um animal, embora, adore um churrasco. Não fiz curso para carrasco. Ninguém me ensinou como torturar um ser humano sem sujar as mãos. Meu irmão mais velho não desapareceu durante a ditadura. Não me fuzilaram no paredón. Não tenho parente em estado vegetativo. Foi muita sorte não ter nascido na Síria. Por um triz, não me tornei traficante. Não tenho sonhos ufanistas. Eu sonho mesmo é com mulher, de noite, até ejacular. Quisera gozar na cara da morte, mas não consigo com tanta gente olhando. Tem algum problema sério comigo: fico indignado com a miséria humana, com tanto mistério acerca da vida e da morte. Dane-se o kardecismo. Dane-se a Dani Calabresa. Sou um desalmado que não tem achado nada engraçado, ultimamente. Roubei um coração, eu confesso; nem assim, deceparam-me as mãos. Justiça seja feita: vou bater uma punheta. Possuo um senso de humor estranho. Eu sei o que você está pensando. O ódio é mais comum do que se imagina. Ninguém me esporrou no trem. Não destroçaram minha vagina num estupro coletivo. Neste ponto, sou individualista: só queria um milhão. Pamonha é ótimo. Não votei no Temer. Isso aqui tá uma bosta, mesmo assim, não vou me mandar do Brasil. Não morri de sede num bote inflável, à deriva, sobre as águas do Mar Mediterrâneo. De que vale a dieta mediterrânea, rica em ômega 3, para pobres diabos que passam fome numa fuga insana da Líbia? Não está funcionando, não tem boa lábia que me faça ter fé. Meu coração parece mais vazio até. Abdelmassih não fez um filho comigo. Não tomei tiro de doze. Não tomei formicida. Não discursei na ONU. Não pari um feto morto, dilacerado por uma bala perdida. Não tenho nenhum ente querido morrendo à mingua na maca de um corredor hospitalar. Certa vez, de uma nave estelar, um astronauta afirmou que a Terra era blue, ou seja, triste. Invejo os homens bem humorados. Queria que as pessoas parassem, olhassem e rissem da minha cara engraçada. Acontece que eu não faço rir. Eu faço é pensar; e isso, às vezes, é uma coisa bastante embaraçosa. (EM TRIBUTO AO COMEDIANTE PAULO SILVINO, QUE NEM PRECISAVA FALAR PARA ME FAZER SORRIR).


Fonte: Boa Informação | https://boainformacao.com.br

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