sexta-feira, 26 de maio de 2017

Crianças não lidam bem com perdas, frustração e limites, aponta psicóloga

RD NEWS

Odilvaldo Ribeiro


Gilberto Leite
Psicóloga Monica Fernandes
Mônica Fernandes avalia que muitas crianças têm dificuldade em lidar com frustrações e competições
A psicóloga Mônica Fernandes de Souza Fernandes, 58 anos, tem exatos 34 anos de profissão. Formada em Campo Grande (MS), em 1983, especializou-se muito cedo no trabalho com crianças e jovens. Atuou por mais de 30 anos em escolas particulares de Cuiabá, prestando consultoria a professores, diretores pedagógicos e alunos. Concomitantemente, abriu um consultório próprio, há bons 30 anos, no centro de Cuiabá. Termos hoje usuais, como bullying, sequer tinham classificação no início de sua jornada, “mas sempre existiu”, faz questão de frisar. Hoje ela ainda trabalha com crianças, mas dedica mais tempo a si mesma, “atendo das 16h às 20h no meu consultório”. Leia a íntegra da entrevista que ela concedeu ao .
Já se descobriu um jeito correto de lidar com o bullying nas escolas?
 As escolas, já há um tempo, têm um preparo muito melhor do que o de anos atrás. Até porque o entendimento do bullying em si foi separado de questões que não eram propriamente bullying. Uma pessoa na escola ou no trabalho, se desentender com o colega, com o amigo, não é bullying. O bullying necessariamente é algo repetitivo, uma situação de dor, incômodo, tudo aquilo que mexe com o ser humano e na autoestima dele, que traz várias dificuldades depois. Mas as escolas têm sim hoje mais preparo, os professores recebem capacitação pra isso. Estamos num nível muito mais elevado de trabalho.
Isso não era tão simples de ser detectado quando a senhora começou a clinicar, não é?
Na verdade, há uns 20 anos, mais ou menos, não tinha uma nomenclatura pra isso, mas o bullying sempre existiu, só não tinha muita ênfase para seus efeitos. Por isso, as crianças sofriam mais, elas não tinham a quem recorrer, o suporte era pouco.  Hoje não, uma criança vítima disso busca ajuda, busca socorro e a escola está mais preparada para resolver. Hoje é mais fácil, antigamente não era não.
Alguns acham que esses cuidados seriam proteção demais e fariam as pessoas mais fracas. Como a senhora responde a isso?

Precisamos de bens de afeto, de religião, de moral, de caráter. Essa é a criação que hoje nós precisamos desenvolver

Superproteger de algo de iniciativa, de autonomia, é uma coisa; a prevenção do bullying tem que ter mesmo, porque não é fácil ser vítima disso. Só quem passa por algo assim sabe as consequências que isso traz. Não tem nada a ver isso de dizer que vai ficar fraco, não são questões de formação de personalidade, nem nada assim. É uma questão séria e tem de haver uma prevenção sim.
Qual o papel dos pais nisso?
Tempos atrás, os pais não tinham uma preocupação muito grande, pensava-se que era até algo corriqueiro na escola. A criança, por si, também não conseguia trazer essa dificuldade à tona. Às vezes passava meses e meses sendo vítima e não se tinha o olhar de hoje, apesar que sempre houve cuidados com a criação dos filhos, e os pais talvez até fossem mais presentes. Mas o olhar era outro, depois que tudo foi passando, as crianças foram colocando o que viviam; as pessoas no ambiente de trabalho também. Isso fez com que tudo acabasse vindo à tona. É algo muito mais recente.
Por que as crianças de hoje sabem lidar cada vez menos com o não?
Gilberto Leite
Psicóloga Monica Fernandes
Sobre a relação escola X família, Mônica Fernandes diz que existem sim pais ausentes e professores que não sabem ensinar. Entende que o educar passa pela família, pelas escolas e pelos professores
Hoje, muitas crianças ainda têm dificuldades para lidar com frustrações, com perdas, com competições. Isso é um trabalho que a família precisa desenvolver e vem se fortalecendo cada vez mais. Porque a criança também precisa de autonomia, precisa ser forte para enfrentar este mundo que aí está, e os pais têm de ter um olhar atento para isso. As crianças cada vez menos conseguem entender limites e conseguem cada vez mais fazer com que os pais não as frustrem. Por exemplo, antigamente, celular era o presente de 15 anos, mas hoje as crianças com 10 já os têm. Amamos a tecnologia e ela é necessária, mas daqui a pouco elas terão dificuldades com o não ter um carro aos 15 anos. A frustração é necessária e faz do indivíduo um homem de bem. É preciso que se frustre, que se passe por essas questões, para depois ter-se um indivíduo que possa ter autonomia emocional. E isso é muito importante.
Há alguma maneira de equilibrar amor e bens materiais sem que estes últimos substituam o primeiro?
Precisamos de bens de afeto, bens de religião, bens de moral e de caráter. Essa é a criação que hoje nós precisamos desenvolver. Os pais trabalham muito, o tempo é pouco, então devemos fazer com que esse pouco tempo seja precioso. Porque muitas vezes há pais que ficam o dia todo dentro de casa e sequer olham nos olhos dos filhos. E isso é algo que deve ser diário, porque se nós não olharmos, outro vai olhar. Ninguém diz que criar filhos é fácil, mas o investimento na criação deles, no afeto, no mostrar o bem, no dizer que o mal não compensa, que ser incorreto e trapaceiro não compensa é muito importante.
Qual o principal desafio dos educadores destes tempos de vidas rápidas e existências líquidas?
Na verdade, há um enfrentamento dos professores, mas há um enfrentamento não só dos aspectos humanos, mas também do conhecer mais, do processo ensino-aprendizagem, as relações, como é que se constroem as relações interpessoiais. 90% dos problemas de uma escola estão relacionados a problemas comportamentais, interrelacionais. Por isso digo que é importante trabalharem juntos família, professor e escola. Sem essa base, é difícil trabalhar. Aliás, vai ser impossível pro professor trabalhar se ele não puder contar com a família.
O que deve ser ensinado em casa e o que deve ser ensinado na escola?
A escola promove sim questões educacionais, longe de dizer que a escola só ensina. Uma coisa é você promover outra, e outra bem diferente é ver isso como obrigação só da escola. Educação de filho, mostrar questões de valores, afetos, o que dizemos ser educação, saber se portar, é a família quem traz. É o berço da família, religião, mostrar caminhos do bem e do mal, construir laços afetivos, de valores, é na família. A escola é um contribuinte nesse ajuste. Quando a criança não tem isso em casa, ela não vai conseguir receber tudo isso somente na escola. Então, é sempre uma parceria. Mas nunca devemos esquecer: a educação do seu filho quem faz é a família, não só a escola.
Professores reclamam que pais delegam essa função às unidades escolares...

As crianças cada vez menos conseguem entender limites e conseguem cada vez mais fazer com que os pais não as frustrem

É errado generalizar a ausência dos pais, assim como também é generalizar que a escola não prega isso, como se fosse uma função só dela. As coisas não são bem assim. Existem sim pais que podem ser ausentes, assim como existem professores que podem não ter tanta competência assim para ensinar. Mas apesar de tudo isso, da correria dos pais, dá sim para se fazer uma boa educação, independente de pais ausentes e professores incompetentes. Devemos levar em conta a carga horária pesada que se tem hoje, pois muitos pais de família trabalham até sete, oito da noite. Mas, lembrando de novo: tempo faz falta mas se um pai sentar com um filho por meia hora, uma hora por dia, e fizer valer essa relação, está ótimo. Como também já disse, há aqueles que ficam do lado o dia inteiro e não fazem nada.
Quais sinais uma criança envia que podem ser interpretados como necessidade de intervenção profissional? 
Os pais hoje procuram muito o psicólogo, isso foi uma coisa crescente ao longo dos anos, porque eles estão vendo que os resultados [do que acontece no mundo], muitas vezes, são preocupantes. Mudança abrupta de comportamento é um grande sinal, se tem uma criança que é calma e, de repente, começa a ficar agressiva, a não dormir bem e a ter comportamentos que não tinha antes, algo deve ser feito. Os pais estão mais atentos a isso, as escolas, nem se fala. Percebem as mudanças e juntos têm feito com que essa parceria tenha sucesso com crianças que têm problemas ou têm alguma outra coisa e que precisam ser encaminhadas. Eu trabalho muito junto, ainda hoje, às escolas. Mas hoje os pais procuram o psicólogo como se fossem ao médico, ao dentista; então, com certeza, há uma preocupação maior. Nesses anos todos, vejo que hoje em dia os pais têm nos buscado mais. Mas há sempre, claro, aquela parte que demora um pouco mais pra aceitar que a criança tem alguma coisa. No mais, os pais têm nos procurado com muito mais frequência.

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Psicóloga Monica Fernandes
Psicóloga Mônica Fernandes atua há mais de 30 anos em escolas particulares de Cuiabá, prestando consultoria a professores, diretores pedagógicos e alunos

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