Pesquisa descobriu que estar sujeito ao bullying precoce e continuadamente faz com que, ao longo do tempo, as crianças simplesmente não tentem mais enfrentar a situação
Os pedidos de ajuda vêm de forma anônima, com deslizes gramaticais que denunciam a pouca idade de quem está por trás dos depoimentos publicados em sites e fóruns da internet. “Olá, tenho 10 anos, eu sofro de bullying, eu sou provocado, eu às vezes tenho vergonha, me chamam de feio, gay, nogento (sic), burro, mulherenco (sic), fofoqueiro, palhaço, estúpido.” “As meninas me excluem, nem falam comigo, e acho que também tô com depressão. Minha mãe nem liga, fala que isso é coisa da minha cabeça. Tô indo supermal na escola, quando eu ficar com 18 anos, vou me suisidar (sic), já vou ser mais uma aberração na sociedade.” “Não tenho com quem falar. Não tenho irmão, nem amigos. Me zoam muito, é a maior humilhação. Estou enlouquecendo. O que faço?”.
Nem sempre esses meninos e essas meninas encontram resposta para seus apelos. O bullying — problema que, de acordo com pesquisadores, é vivenciado por 75% das crianças e dos adolescentes — muitas vezes acaba subestimado, compreendido como algo normal da idade. Porém, um estudo publicado na revista Child Development, da Sociedade de Pesquisa do Desenvolvimento Infantil, nos EUA, mostra a importância de se estender a mão aos pequenos ao primeiro sinal de sofrimento. O artigo indica que a intervenção precoce é essencial para evitar danos persistentes à saúde mental que podem afetar vítimas de perseguição mais severa e prolongada, cerca de 10% a 15% daqueles que sofrem bullying.
O trabalho foi conduzido por pesquisadores de três universidades americanas em escolas do ensino fundamental do país. Seiscentos e trinta e seis estudantes do segundo ao sexto anos foram acompanhados de 2011 a 2016 e, ao longo desse período, submetidos a uma avaliação de nível de estresse. O interesse dos especialistas era investigar como a forma que as crianças lidavam com eventos estressantes era afetada quando elas se tornavam alvo de vitimização pelos colegas.
“A resposta ao estresse nas relações sociais desempenha um importante papel no desenvolvimento de problemas mentais, como depressão. As crianças saem-se melhor quando podem controlar suas reações, como sentimentos, pensamentos e ações, e se endereçam ativamente aos problemas”, explica Wendy Troop-Gordon, professora de psicologia da Universidade da Dakota do Norte e principal autora do trabalho. “Essas respostas incluem estratégias como encontrar soluções para problemas, pensar neles de forma positiva e achar meios de regular as emoções. Diferentemente, quando elas evitam os fatores estressores ou quando suas reações estão muito fora de controle, o risco de problemas emocionais aumenta.”
Apatia
Normalmente, à medida que cresce, a criança lida mais facilmente com os problemas à sua volta. Contudo, no estudo, os pesquisadores descobriram que estar sujeito ao bullying precoce e continuadamente faz com que, ao longo do tempo, os pequenos simplesmente não tentem mais enfrentar a situação. É como se aceitassem serem vitimizados, como os cães de estudos realizados na década de 1960 que, de tanto levarem choques (de pequena intensidade, contudo), não buscavam sair da jaula em que estavam, nem desligar o mecanismo que acionava as descargas elétricas.
“Quando as crianças e os adolescentes são expostos à violência escolar precocemente e por um longo período de tempo, eles não criam mais estratégias de enfrentamento, um fenômeno que chamamos de desamparo aprendido”, explica a psicóloga infantojuvenil Flávia Lacerda, facilitadora do Amigos para a Vida, um programa reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que faz prevenção e intervenção em casos de bullying e ensina os pequenos a desenvolverem meios de lidar com o estresse. “No prazo de cinco anos do estudo, crianças que começaram a sofrer vitimização com 7 já podiam ser classificadas no nível três de estresse, que corresponde à exaustão”, diz. O estresse, portanto, torna-se crônico.
As consequências disso podem ser trágicas, observa a psiquiatra Júlia Torres, diretora médica da Clínica Psicodiagnóstica, que atende o público infantojuvenil. “Quanto mais cedo a criança é exposta, piores são os impactos. É da infância que tiramos o aprendizado. Concepções do mundo surgem aí, quando se aprende como é o mundo, como são as pessoas”, lembra. Uma experiência traumática nessa fase pode deixar sequelas que persistem até a idade adulta, destaca a médica. “Toda criança convive com situações adversas. Ela estará exposta a críticas, mas o problema é quando isso extrapola. As consequências a longo prazo podem ser tanto prejuízo acadêmico quanto impacto nas relações interpessoais, como famílias, amigos, trabalho e casamento”, explica.
Desvios
Em muitos casos, a criança e o adolescente podem acabar diagnosticados com depressão e ansiedade ou se envolverem com drogas. Também não são raros os casos de suicídio — há duas semanas, um menino de 9 anos se matou nos Estados Unidos depois de sofrer continuamente nas mãos de vizinhos e colegas de escola. Em agosto, um garoto de 13 fez o mesmo, cansado das agressões em uma escola de Nova York. Ele havia reclamado várias vezes com os pais e com os professores, mas ninguém fez nada. A última mensagem do estudante foi perturbadora: “Eu desisto”.
A psicóloga Flávia Lacerda diz que o resultado do artigo publicado na Child Development é mais um chamado para que pais e educadores identifiquem o bullying precocemente e façam as devidas intervenções. “Não tem de esperar acontecer algo mais grave nem aguardar que a vitimização se intensifique. Infelizmente, apesar de o bullying ser crime (a lei que estabelece o Programa de Combate à Intimidação Sistemática foi sancionada no ano passado), as escolas não estão preparadas para criar projetos. Mesmo nas mais renomadas, essas iniciativas são vagas”, observa. Em casa, os pais devem ficar atentos a mudanças de comportamento, resistência de ir à escola e perda de fome, entre outros sinais, ensina a especialista.
ENTREVISTA com Raquel S. L. Guzzo
Escolas e adultos despreparados
A violência à qual muitas crianças e adolescentes estão expostos no contexto familiar e escolar não tem sido levada suficientemente a sério, na opinião de Raquel S. L. Guzzo, professora titular do Centro de Ciências da Vida da PUC-Campinas e integrante da Comissão de Psicologia na Educação do Conselho Federal de Psicologia. Considerado muitas vezes como uma brincadeirinha sem maiores consequências, o bullying pode levar à formação de gangues, ao suicídio e à repetição do ciclo da violência, alerta. Em entrevista ao Correio, Guzzo lamenta que, no Brasil, o sistema não valorize o educador nem aparelhe a escola para ajudar no enfrentamento de um problema grave, com forte impacto no desenvolvimento do ser humano.
Há algum período da vida da criança e do adolescente em que o bullying tem potencial maior de afetar o desenvolvimento?
Uma criança pequena tem como principais espaços de desenvolvimento seu grupo familiar e a escola. Quanto menor ela for, menos entende a provocação e a violência, acabando por internalizá-las, naturalizá-las e reproduzi-las. Quando os adultos familiares caçoam, ridicularizam, provocam com “brincadeiras”, apelidos ou mesmo até com agressão, essa violência passa a fazer parte do cotidiano, exatamente por aqueles que deveriam ser os responsáveis pelo crescimento e pelo fortalecimento das crianças. Ela chega à escola já prejudicada por esse tipo de relação social que dificulta seu processo de desenvolvimento. Na escola, quando essas situações se repetem, existe um contexto mais amplo da vida da criança cujos impactos são também graves.
O ambiente escolar de alguma forma favorece a vitimização entre crianças?
A criança na escola, em um contexto de menos adultos e, muitas vezes, com dificuldades para o estabelecimento de vínculos afetivos mais fortes, fica mais propensa a ser vítima desse tipo de violência. Por essa razão que é importante que a escola mantenha uma relação de adultos/criança em uma proporção em que seja possível a interação singular, além de uma atenção redobrada na dinâmica das relações em sala de aula. É comum que a professora, ou o professor, não perceba de onde vem a agressão e responda atribuindo culpa à vítima, quando ela reage, o que contribui de modo mais drástico à internalização da violência.
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