Sem nenhum aviso, inesperadamente o Escaravelho do Diaboretorna. Trata-se de um famoso livro infanto-juvenil, de Maria Lúcia Machado, que me acompanhou nos primeiros anos de escola e que, agora, foi transformado em filme (excelente, com os impagáveis Jonas Bloch e Lourenço Mutarelli). Eis que, com o neto e pipoca, em cores e movimento, os besouros outra vez penetram em meus pesadelos.
Na aventura que se intensifica página a página (fotograma a fotograma), insetos, assassinatos e pessoas ruivas se entrelaçam. Para mim, ruiva que só eu, é obra de arte e cultura que serve como espelho, que cria profundas identificações, revela porções misteriosas de minha consciência e inconsciência.
Há muitos anos, éramos apenas três, afogadas por um mundaréu de alunos, apontadas e discriminadas na imensidão do pátio de recreio das meninas como “as ruivas”. Eu e duas irmãs (Laura e Lígia) de cabelos vermelhos, afogueados.
Na escola querida onde aprendi a escrever, sob a energia magistral de Mário de Andrade e Cecília Meireles (ilustríssimos alunos que também por ali tinham encontrado familiaridade com as “primeiras letras”), causávamos alguma estranheza. Gritavam-nos: “Ruivas! Ruivas!” Hoje seria o bullying, naquela época, embora não se empregasse a palavra, era exatamente a mesma coisa.
Durante o intervalo, nossas sombras alongadas escorriam do cantinho onde nos refugiávamos, lambiam as paredes, queriam escapar. Um pequeno grupo diferente do resto, segregado.
Também havia meninos ruivos, mas não usavam o mesmo pátio. Quando nos encontrávamos na entrada e na saída eles eram os mais terríveis, pouco solidários com nossa classe tão branquinha e míope. Paradoxalmente nos agrediam e enxotavam.
Revendo o filme lembrei-me, embrulhada na minha ansiedade ruiva, minoria das minorias, daqueles recreios marcados pelo pânico.
Hoje, amadurecida por décadas de proximidade com a espiritualidade, me preocupo cada vez mais com a questão das violências (simbólica, psicológica, de linguagem, física, etc.). Mesmo que seu filho não seja ruivo, atenção para que ele tenha um espaço de apoio e diálogo se a temperatura subir entre os colegas de escola ou de esporte, na pracinha ou no condomínio.
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