Na infância, Vanessa Bencz foi humilhada por professores e colegas. A história de superação de uma jornalista que criou uma super-heroína para salvar alunos em perigo
CRISTIANE SEGATTO
Fonte: Revista Época
Tansa é uma palavra pejorativa. Não conhecia, mas soube que é bem usual em Santa Catarina. Significa tola, pateta, inútil. Quem me ensinou foi a jornalista Vanessa Bencz, uma moça de 29 anos que escreve e desenha bem. Vanessa demorou a acreditar que tivesse esses e outros talentos.
Foi uma criança atormentada pela ideia de que não servia para coisa alguma. Acreditou nisso durante muitos anos. Era só o que ouvia de colegas e professores numa escola particular de Joinville.
As humilhações eram diárias. Os apelidos colaram nela como uma segunda pele: tansa, burra, “desperdício de oxigênio”. Aos 10 anos, Vanessa ia mal na escola. Não conseguia prestar atenção.
Um segundo de distração, um olhar pela janela e a mente viajava para longe. Era como se ela não estivesse na sala. Com a sucessão de notas baixas, os colegas trataram de se afastar. Diziam que burrice era contagiosa.
Filha do meio, ensanduichada entre dois irmãos que foram ótimos alunos, Vanessa sofria na escola e em casa. Doía perceber a tristeza confusa dos pais. “Eles foram ingênuos. Não souberam me ajudar”, diz ela. “Por causa das notas baixas, cortaram meu kung fu e tudo o que eu adorava fazer.”
Na adolescência, a vida não ficou mais fácil. Nem quando ela foi transferida para uma das mais prestigiadas escolas da cidade. De tanto desenhar durante as aulas, começou a acreditar que aquele seria seu futuro. A família a elogiava e a incentivava.
Quando disse ao professor de matemática que pretendia ser desenhista, ele respondeu com palavras mais duras que um intensivão de trigonometria para quem ainda não conhece as quatro operações. “No máximo você vai ser cartazista de supermercado.”
Vanessa não respondeu. Engoliu o choro. Um dia, felizmente, ele transbordou. Foi quando pediu socorro aos pais. Contou sobre as humilhações e disse que não aguentava mais. O pai decidiu levá-la a uma psicóloga. A menina chorou ainda mais. “Não sabia o que era. Imaginei que fossem me colocar numa camisa de força”, conta.
A psicóloga trouxe o olhar e o conhecimento que faltaram à família e aos professores. Depois de várias sessões, testes e provas de conteúdo escolar, provou a Vanessa que ela não era burra. O que tinha era o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), conhecido naquela época como distúrbio de déficit de atenção (DDA).
Vanessa não foi tratada com medicamentos, mas aprendeu técnicas para melhorar sua atenção e seu desempenho na escola. Com a psicóloga, percebeu que oscilava entre dois comportamentos: dispersão e hiperfoco. Aprendeu a tirar o máximo proveito dos momentos em que conseguia se concentrar.
Aos pouquinhos, começou a perceber que podia se superar. “Em vez de zero, tirei 0.8 numa prova. Depois, tirei 1,3. No dia em que recebi uma nota 4 em matemática, fiz uma festa”, diz. Nessa fase, Vanessa acreditou que também era capaz de aprender a escrever bem. Acumulou leituras, pegou gosto pela escrita e resolveu prestar vestibular para jornalismo.
A virada começou ali, naquele ambiente novo e aberto a qualquer forma de expressão. Nas aulas de redação, ela gostava de escrever livremente, de flertar com a literatura.
Em uma das aulas, reviveu a situação em que o professor selecionava uma redação para ler em público. Na escola, os trabalhos dela eram lidos em voz alta como exemplo de redação ruim.
Na faculdade, a visão sobre a produção dela era outra. “Quando o professor Álvaro Larangeira começou a ler meu texto para a turma, senti que estava diminuindo na minha carteira”, diz Vanessa.
"Assim que ele terminou a leitura, pediu palmas para a redação que julgou excelente”, afirma. “A menina de oito anos ficou feliz em arrancar da testa o apelido escrito com a letra da professora malvada”.
Vanessa é autora do blog Garota Distraída. Publicou dois livros: Relato do Sol e Memórias de uma jornalista distraída, ambos pela Editora Letradágua. Durante três anos, foi repórter no grupo RBS.
Hoje trabalha num projeto capaz de transformar vidas. Ela percorre escolas de Santa Catarina para falar sobre bullying. Nos últimos dois anos, fez palestras para mais de 80 turmas. Percebe que, apesar do termo “bullying” ter sido disseminado e banalizado, muitos professores continuam despreparados para lidar com ele.
“Os alunos desabafam ao ouvir minha história. Contam que ainda existem professores que criam apelidos pejorativos, amassam trabalhos e arremessam longe”, diz Vanessa. “Isso precisa acabar. Não podemos mais tolerar o intolerável”.
Ela quer fazer mais. Criou um projeto de história em quadrinhos chamado Menina Distraída. A protagonista, vítima de bullying na escola, é salva por uma super-heroína. Todos os personagens são baseados em histórias reais, que a autora ouviu nas visitas às escolas. Vanessa escreveu a história e ilustrou os quadrinhos.
“Quero que os alunos se sintam representados. Escolhi fazer uma HQ desta vez para ficar divertido e fazer brilhar os olhos dos alunos”, diz. Para imprimir a história e distribuir gratuitamente nas escolas, Vanessa recorreu ao financiamento coletivo. O projeto custa R$ 16 mil. Metade ela já conseguiu. Para assistir a um vídeo em que ela explica o trabalho, contribuir com ele e garantir seu exemplar, clique aqui catarse.me/pt/meninadistraida. Para assistir a uma reportagem de TV sobre as palestras nas escolas, o link é esse.
Vanessa produz bem e muito. Ainda na faculdade começou a se tratar com ritalina, o medicamento mais usado nos casos de TDAH. “Ele me ajuda muito. Coloco meus fones de ouvido, fico totalmente focada no trabalho, produzo e me sinto muito bem.”
No Brasil, o uso de ritalina foi tão banalizado quanto a palavra “bullying”. Há uma profusão de diagnósticos errados e a crença de que esse e outros medicamentos psiquiátricos possam ser a melhor solução para acalmar crianças irrequietas, cumprir as metas da empresa ou trazer a felicidade.
Tudo isso existe, mas histórias como a de Vanessa estão aí para mostrar que nos casos em que a pessoa sofre, de fato, de TDAH, a medicação, a psicoterapia e outros recursos são capazes de transformar vidas.
Vanessa diz que faltou, em sua infância e adolescência, uma pessoa com bom senso que dissesse: “Parem de chamar essa menina de burra. Vamos ensinar a vida de outra maneira”. A psicóloga foi uma dessas pessoas. O professor Alvaro Larangeira foi outra. Não o conheço, mas, simbolicamente, tiro meu chapéu para ele. Não são poucas as marcas (boas ou más) que professores deixam nos alunos. Professores mudam histórias. Aconteceu comigo. Acontece, aqui e ali, com alunos que tiram a sorte grande de topar com um dos bons. Poderia acontecer muito mais.
Esse texto acabaria aqui, queridos leitores, mas não resisti à tentação de dar voz a quem interessa. Com vocês, Vanessa Bencz:
O BULLYING DA CANETA VERMELHA
Burra. Tansa. Distraída. Insuficiente.
Não: nenhum desses é o meu nome. Meu nome é Vanessa.
Ter o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) fez a minha infância e adolescência um pouco traumatizantes. Eu não tive o sorriso tranquilo daqueles estudantes que tinham orgulho de seus boletins. Eu me retorcia de agonia na cama, todas as noites, pensando na tortura que eu viveria na manhã seguinte na escola. O processo de tentar estudar para provas, respondê-las e depois recebê-las com uma nota baixa foi a tortura lenta que vivi por 10 anos. O desprezo dos colegas e a tristeza confusa dos meus pais eram ainda piores do que o rótulo de “aluna insuficiente”.
Certa vez, na segunda série, aos oito anos de idade, nossa professora nos passou a seguinte tarefa: escrever uma carta para um parente que morava longe. Escolhi como destinatário a vó Lenita, que mora em Rio do Sul (SC). Escrevi na cartinha que estava morrendo de saudades e que ela seria bem vinda para nos visitar; minha família poderia organizar um churrasco e acolhê-la com todo o conforto.
Lembro-me que eu estava insegura quando entreguei esta redação para a maldosa caneta vermelha daquela professora, que parecia não ir com a cara de ninguém. No dia seguinte, a mesma professora protagonizou um espetáculo horroroso que ficou marcado como uma queimadura na minha auto-estima. Ela selecionou as cartinhas que ela julgou serem as piores e leu na frente de todos, com deboche e frieza. Eu estava torcendo para que o meu texto inocente não estivesse no meio daquelas vítimas.
Mas estava.
Lembro-me que ela começou a ler a minha carta com ironia, dando tons frios para aquelas palavras que escolhi com carinho. Enquanto lia minhas frases, a professora me olhava com sarcasmo. Como em um desenho animado, senti que eu diminuía cada vez mais na minha carteira, até sumir. Eu não tive coragem de contar isso para os meus pais. Com menos de uma década de vida, eu não soube lidar com essa humilhação.
No mesmo dia, a professora entregou as redações para seus respectivos autores. Ao entregar a minha, disse com frieza: “sua letra é horrível. Tem praticado caligrafia?” Gaguejei e não consegui responder. “Anda, fala, ficou muda? Sua tansa!”.
Dias depois, a professora chamou meus pais para conversar sobre o meu desempenho insuficiente. Lembro-me de como ela recebeu meus pais: com um sorriso simpático e inocente que ela nunca usava conosco, estudantes.
A professora se referiu a mim como “tansa” durante todo o ano. Meus colegas também adotavam o adjetivo para me chamar de vez em quando. Eles achavam super engraçado. Eu supunha que tinha algo de errado comigo por sentir vontade de chorar ao invés de rir como eles. “Devo ser uma tansa mesmo”. Essa foi a raiz da minha timidez, característica que me deu o maior trabalhão nos anos seguintes. Mas trabalho mesmo foi conseguir me olhar no espelho sem ver essa palavra escrita na minha testa.
Mudei de escola no ano seguinte. Encontrei outros professores mais criativos que me deram nome e sobrenome: garota distraída. Os colegas, igualmente imaginativos e maldosos, arranjaram os apelidos que você leu no começo desse texto.
A timidez para falar com estranhos durou dez anos; os apelidos foram perdendo a força quando entrei no ensino superior e a letra horrível eu carrego até hoje.
No comecinho da faculdade de jornalismo, revivi a situação do professor que seleciona a redação para ler em público. Quando o professor Álvaro Larangeira começou a ler um texto meu para a turma, senti que eu estava diminuindo na minha carteira. Assim que ele terminou a leitura, pediu palmas para aquela redação que ele julgou excelente. A menina de oito anos ficou feliz em arrancar da testa o apelido escrito com a letra da professora malvada.
Anos depois, uma grande amiga que é professora me convidou para conversar sobre literatura e jornalismo com a turma dela. De frente para 40 adolescentes desconfiados que me olhavam de cima a baixo, perdi a fala. Gaguejei como a menina de oito anos que fui; senti insegurança como a garota distraída que sou. Os segundos transcorriam e o meu silêncio parecia aguçar a curiosidade dos estudantes. Desesperada, apelei para algum tipo de empatia. O que consegui falar foi:
- Levanta a mão quem alguma vez já tirou nota zero!
Com uma explosão de risadas por parte da turma, me surpreendi com a erupção de mãos que foi ao ar. Brincando e interagindo, abri o meu coração para aquela turma. E para a turma seguinte. E para as 50 turmas que conversei durante os meses subsequentes. A garota distraída estava mais para garota feliz!
Hoje, olhando para trás, sinto mágoa. Fico triste por concluir que aqueles profissionais da educação, além de estarem despreparados para lidar com uma estudante diferente, incentivaram o bullying dentro da escola. Acho que, no meu caso, o estrago não foi tão grande – com criatividade, aprendi a lidar com esses fantasmas transformando-os em contos e crônicas. Mas… e o restante das pessoas? Como se viram aqueles que, além de agressões verbais, sofrem ou sofreram violências físicas e ameaças? Como se sente aquela pessoa que, por causa do bullying, mira um revólver para a própria cabeça?
Não tenho coragem de saber.
***
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
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