segunda-feira, 6 de junho de 2011

Por vingança ou um segundo na net

Os jovens portugueses têm sido protagonistas públicos de histórias de uma violência atroz. Retrato de uma geração

Bárbara foi uma criança calma até ao final da primária. A mãe tinha desaparecido "sem deixar rasto" quando tinha três anos mas a avó Maria do Céu e o pai Fernando contavam que a presença de ambos bastasse para compensar a ausência. Durante algum tempo pareceu chegar. Bárbara tinha "comida, cama, roupa lavada e amor". Tinha também "uns dinheiros" para comprar as roupas da moda, iguais às das amigas, mas desdenhava da escola e preferia os corredores do Centro Comercial Colombo fizesse sol ou chuva. Quando se zangava, agredia fisicamente a avó, respondia torto ao pai.

No dia 21 de Maio, aos 17 anos, tornou-se uma das protagonistas de uma história infeliz que chocou quem assistiu - juntamente com Raquel e com a cumplicidade de Rodolfo, Marco e Ricardo agrediu violentamente Filipa, 13 anos, frente a um telemóvel com câmara de filmar. No dia seguinte o vídeo chegava aos olhares do País depois de postado no Facebook com a promessa de que "aquilo era apenas um aquecimento". Depois saltou para o YouTube, juntando-se à panóplia de vídeos filmados e protagonizados por adolescentes portugueses.

VÍDEOS DE PANCADA

Há chapada, soco e pontapé - e milhares de visualizações. Entre os comentadores, há quem critique - a maioria aplaude. Há a morena que esbofeteia e empurra a ruiva porque esta mandou uma mensagem para o Hi5 (outra rede social) do seu mais que tudo, do lado de fora de uma escola em Portugal; a morena contra a loira que cometeu igual delito na Musgueira; dois rapazes de Mangualde que se agridem e que ninguém quer separar: só filmar. A internet é um pequeno retrato do que se passa em muitas ruas e escolas do País. Há palavrões a rodos, agressões a rodos, violência de bradar aos céus. Quem são os jovens de hoje - são eles mais agressivos do que as gerações que os antecederam?

De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna de 2010, a delinquência juvenil registou um aumento de 11,5%, com mais 401 casos do que em 2009, totalizando 3880 ocorrências. Segundo o agente da PSP Luís Pego, destacado para o programa de policiamento de proximidade ‘Escola Segura' desde 2004-2005 em V.N. Gaia, estes são dados que reflectem um problema real. "A violência entre os jovens tem aumentado. Quando me iniciei no programa ‘Escola Segura' os casos estavam relacionados com furtos de carteiras, telemóveis. Actualmente a grande maioria dos casos é de violência".

O motivo de tal comportamento corresponde, na sua maioria, a um padrão. "A maior parte dos casos são por causa de namoros, ex-namorados ou ex-namoradas que agora andam com outro, com problemas de exclusão ou não inclusão ou até porque alguém não tem um par de sapatilhas de marca. Hoje em dia é muito fácil arranjar brigas, encontros ou até realizar ameaças, quer através do telemóvel como através das redes sociais. Um boato corre muito facilmente junto dos jovens". Para uma agente da Escola Segura da zona de Lisboa, "o problema hoje é que os jovens fazem as coisas pelos seus próprios meios, fazem ajustes de contas à pancada e sem falar primeiro".

RAPAZES E FOFOCAS

"As raparigas discutem por coisas parvas como homens e fofocas do Facebook mas normalmente são menos violentas porque só puxam os cabelos e dão umas chapadas" - atira João, 16 anos, à porta da Escola Secundária Pedro Alexandrino, na Póvoa de Santo Adrião, em Odivelas, onde as agressoras de Filipa andaram antes de chumbar o ano por faltas. O ‘normalmente' de João não se aplica a este caso. A violência foi evidente. Tiago, 17, abana a cabeça. "Mas também há rapazes a bater em raparigas. Eu dei no outro dia um murro a uma miúda que me bateu com o dossiê na cara. Fui suspenso dois dias mas não me aconteceu mais nada".

Catarina e Bia, de 14 e 13 anos, aproximam-se. São amigas de Bárbara e cerram fileiras para a defender. "Aquilo foi por causa do namorado da Bárbara. A Filipa meteu-se com ele e então ela mereceu". João volta à carga: "Pois, por causa disso e porque a Filipa ofendeu a mãe do Rodolfo". Catarina concorda. "Pois, andou a dizer que a mãe dele era stripper. Nunca se deve meter as mães ao barulho". Todos aprovam. "Por isso eu acho que a Filipa mereceu apanhar, foi bem feito para não dizer aquilo que disse", continua Catarina, antes de Bia adoçar a frase: "Mereceu, mas se calhar podiam ter sido menos pontapés".

MOTIVOS SEM MOTIVO

O pai de Bárbara quis incutir-lhe independência e responsabilidade; a avó quis transformá-la numa mulher: "Mas ela nunca quis ajudar em casa, dizia que não gostava desses trabalhos; nós é que fazíamos tudo por ela". Por volta dos dez anos começaram a notá-la violenta, instável, "mais agressiva. Deixámos de ter mão na Bárbara. Ela fazia o que queria, menos sair à noite, que não deixávamos" - conta a avó, Maria do Céu, pensionista, que partilha casa com o filho, hemofílico.

Já Raquel cresceu com os pais, em Loures, muito próxima de uma avó que via diariamente, e na casa de quem se escondeu depois do vídeo se ter tornado público. Conheceu Bárbara na Secundária Pedro Alexandrino, na Póvoa de Santo Adrião, e logo se tornaram amigas. Era comum vê-las no Centro Comercial Colombo, nas imediações do qual espancaram Filipa "por ela ser intriguista", como contaram ao CM dias depois da agressão. Entre os ‘delitos', o facto de ter dito "que tinha 15 anos e afinal só ter 13".

Ao juiz, quando presentes a tribunal, Bárbara e Rodolfo nada disseram. Estão em prisão preventiva. Raquel, por ter menos de 16 anos na altura da agressão, foi encaminhada para o Centro Educativo de Santa Clara, em Vila do Conde.

17 FACADAS

Cigarros ou dinheiro. Terá sido por uma destas coisas que Denise Melo, de 17 anos, esfaqueou Bruna Bargão, de 14, dias depois da agressão de Filipa. Em frente ao espelho Bruna centra-se na imagem que os seus olhos magoados contemplam. A figura feminina que aparece agora reflectida é alguém diferente, marcada por uma lâmina de x-acto que na mão traiçoeira de uma jovem lhe desferiu 17 golpes. As cinco horas e meia de operação no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, deram-lhe mais de cem pontos espalhados pelo corpo. Em breve começará a ter consultas de psiquiatria, por intermédio da Comissão de Protecção de Menores. Para já, o medo de sentir os olhos dos outros cravados na sua pele fá-la recolher-se na sua dor silenciosa.

Aos 14 anos, Bruna não estuda nem trabalha. O desencantamento com a escola, que terá começado com a separação dos pais, e "algumas más companhias" fizeram com que as suas notas no primeiro período do 7º C na E. B. 2,3 Maria Alberta Menéres não fossem além de uns, dois e não satisfaz. Meses depois, a 27 de Maio, Bruna queria apenas divertir-se com os amigos. Com a autorização dos pais, foi até Mem Martins, para o apartamento de um homem de 30 anos. Bebeu whisky com coca-cola, como os outros. No grupo estava um elemento novo - Denise, também sem ocupação, que foi abandonada pelo pai e que vivia com a mãe, cozinheira de profissão e de saúde débil - que Bruna havia conhecido através de uma amiga.

O desfecho trágico da noite ocorreria entre as 20h30 e as 20h45, por dez euros. A Polícia Judiciária, por seu lado, acredita que tudo terá acontecido por um cigarro. "Segundo a minha filha, a miúda que a agrediu apareceu lá com uma amiga e pediu-lhe dez euros. A Bruna disse que não lhos ia dar mas a outra miúda começou a subir o tom da conversa e ainda lhe tentou tirar a mala e o telemóvel. Depois desceram as duas para a rua e aí foi a Bruna que tomou a iniciativa. Descalçou-se e mandou a outra miúda ao chão. A outra puxou de um x-acto e golpeou-a toda", conta Bernardo Pedro, pai de Bruna Bargão, transtornado.

"Branca és bonita, já vais ficar feia". Estas terão sido as últimas palavras que Denise dirigiu a Bruna, antes de a ferir e fugir, numa brutalidade que depressa ganhou cor. Só o vermelho vivo do sangue fez com que a adolescente de 14 anos se apercebesse de que estava ferida. Valeu-lhe a intervenção de um jovem de 21 anos que também ficou ferido com alguma gravidade num tendão, razão pela qual esteve internado no Hospital Amadora-Sintra.

"A minha filha tem cortes no pescoço, no tórax, na cabeça, nas pálpebras dos olhos. Só não lhe furou os olhos porque a Bruna os fechou. Tem um corte com 20 centímetros que vai desde o peito ao estômago. Fez-lhe uma roseta na bochecha, quase a separar parte da face. Ainda lhe tentou apanhar uma veia no pescoço. Ela queria matá-la", desabafa Bernardo Pedro, revoltado. "Sinto-me cortado por dentro. Também eu choro". Mas agora é tempo de recomeçar uma nova etapa. "A Bruna voltará a estudar quando estiver recuperada. Vamos pedir uma indemnização à agressora" que está actualmente detida no estabelecimento prisional de Tires, em prisão preventiva, indiciada por tentativa de homicídio, ofensas à integridade física agravada e detenção de arma proibida.

Foi a própria mãe, Manuela Melo, que na noite do crime deu conta à polícia de que a filha estava em casa. "Mas quem vai pagar as plásticas que provavelmente a minha filha terá de fazer, os cremes caros, se a agressora não o puder fazer? Apesar de sermos pais separados, trabalhamos e não somos pais negligentes".

SOCIEDADE IMPULSIVA

"Temos assistido a um aumento da gravidade face à violência. Se pensarmos ao nível da nossa sociedade, que se tem vindo a tornar mais ágil e impulsiva, poderemos enquadrar este aumento numa procura rápida de soluções, numa incapacidade para reflectir, para ponderar, o que é típico da adolescência mas acaba por não ser contido", considera Tânia Paias, psicóloga clínica.

A especialista não considera, no entanto, que os vídeos que chocaram o País possam ser considerados bullying. Bullying é violência - mas é continuada. Como aconteceu com Rui (nome fictício), 11 anos, vítima da fúria de um colega numa escola do Norte do País.

"A primeira agressão que o meu filho sofreu foi em 2008. Levou um golpe na região lombar, que o conduziu a um internamento de cerca de 20 dias, na sequência de uma pielonefrite, que surgiu após a lesão traumática do rim", recorda a mãe, Cristina, para quem o calvário estava então longe de terminar. "Depois disso já sofreu mais agressões, uma delas no olho, tanto que temos queixas na GNR, mas o processo foi arquivado por se tratar de menores".

Para Tito de Morais, fundador do site Miúdos Seguros na Net, "os pais estão a passar as mensagens erradas para os filhos. Somos intransigentes com os outros, falta-nos calma. Basta olhar para os políticos: um incidente numa campanha eleitoral com um fulano que destrói um megafone ao outro".

OS HEMATOMAS DE JOÃO

O estudo ‘Violência na escola: vítimas, provocadores e outros', realizado por Margarida Matos e Susana Carvalhosa através de inquéritos a 6903 jovens dos 6º, 8º e 10º anos de todo o País, revela que os jovens que se envolvem em actos de violência apresentam um perfil de afastamento em relação à família, casa e escola e estão mais ligados a um grupo de amigos com quem se dão fora e depois da escola.

Rodrigo (nome fictício), de 13 anos e aluno da E.B. 2,3 de Febo de Moniz, em Almeirim, corresponde ao perfil. A agressão de que foi alvo no dia 12 de Abril, entre as 21h e as 21h30 num ringue perto da sua escola, custou-lhe vários hematomas na zona lombar, tronco e braços atestados por um médico em tribunal. Ao que tudo indica, a agressão terá sido realizada por um grupo de jovens mais velhos que não partilham o mesmo recreio.

Ana Cristina Lopes, mãe do jovem, garante que "há mais miúdos que só não falam porque têm medo". João (nome fictício), 14 anos, foi agredido com um murro e dois empurrões por um colega no pátio da escola, devido a uns rumores de que andaria a dizer mal da mãe do agressor. Recebeu tratamento hospitalar. O agressor teve cinco dias suspenso.

João regressou à escola mas há cerca de duas semanas terá sido novamente ameaçado. A mãe foi buscá-lo e desde então que não vai às aulas. José Manuel Carreira, director da Escola de Febo Moniz, defende que os dois casos nada têm a ver - as autoridades estão a investigar - e que não existem casos de violência entre jovens na escola. "Não sou capaz de dizer que não haja uma discussão, uma briga, mas isso há em qualquer lado". Há em lados demais, infelizmente.

COLEGAS ESPANCAM RECRUTA

Imobilizado no chão da camarata, quase nu, um recruta de 18 anos da Escola de Fuzileiros de Vale de Zebra, em Coina, no Barreiro, foi humilhado e espancado por um grupo de colegas que, indiferentes aos sucessivos pedidos da vítima para que parassem com a agressão, continuaram a desferir-lhe socos, chapadas, pontapés e ainda recorreram a uma lista telefónica, a um cinto e uma esfregona.

O ataque filmado e recentemente divulgado na internet remonta a Agosto de 2010. O caso só terá chegado ao conhecimento dos superiores em Novembro passado, altura em que foi aberto um processo disciplinar. Os agressores foram punidos com cinco dias de detenção, mas recorreram da decisão.

Actualmente, agressores e vítima estão na base de Fuzileiros do Alfeite, em Almada. Aguardam pelo cumprimento das sanções de acordo com o Regulamento Disciplinar Militar.

NOTAS

48,8 POR CENTO

48,8 por cento das raparigas, entre 680 alunos da Grande Lisboa, dizem ser agressoras, diz tese de Sónia Seixas.

LISBOA

Foi em 2010 o distrito com maior aumento de casos de criminalidade violenta participada - mais 224.

782 CASOS

Sinalizados de falta às aulas, mau aproveitamento e violência física e verbal são relativos a alunas, entre 1808 episódios, segundo o IAC.

Fonte: Correio da Manhã - Portugal

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