terça-feira, 4 de agosto de 2015

'É que Narciso acha feio o que não é espelho'

Fonte: Monitor Digital

Assim Caetano define, em Sampa, aquela mania que a gente tem de desprezar no outro o que o outro tem de sobra e que mais nos falta, tudo o que não é reflexo da nossa própria beleza. De bulliyng, todo mundo certamente já ouviu falar. Fala-se pouco da “vergonha tóxica”, um estágio depressivo causado pelo bulliyng. No estágio da “vergonha tóxica”, o sujeito está tão diminuído que se julga um traste, um nada, um apêndice do outro e começa a questionar a sua própria utilidade como pessoa. Aí, se imola, se automutila para que a dor física alivie a dor moral resultante da desconstrução psicológica que o bulliyng impõe. O final da linha é o bullycídio, o suicídio por causa do bullying. O bullying é uma das principais causas de suicídio entre crianças e adolescentes e a terceira maior causa de mortes em todo o mundo. Estudos da Universidade de Yale mostram que cerca de 19% dos alunos entrevistados já pensaram em se matar; 15% desses chegaram a planejar a própria morte; e 8,8% tentaram a morte mas foram impedidos por alguém.

O bullying não é coisa nova. Sempre existiu e sempre existirá. Novos são apenas o nome da doença (sim, “doença”, porque esse assédio repetido e destrutivo é uma forma de sociopatia, um tipo deletério de doença social) e a maneira de encará-lo. O bullying é uma espécie de assédio moral. Por trás de todo assediador moral está um sociopata, uma mente doentia que tem dificuldade em trabalhar a sua agressividade. O sociopata tem baixa auto-estima e inveja narcísica do êxito do outro. A literatura médica diz que, em maior ou menor grau, de 1% a 4% da população são sociopatas. Nem todos os sociopatas são criminosos em série, mas a fronteira entre uns e outros é um fio tênue. A sociopatia é uma espécie de transtorno de personalidade caracterizado pelo desprezo das obrigações sociais e pela falta de empatia para com os outros. Sociopatas são predadores intra-espécies. O sociopata ignora convenções sociais, desconsidera sentimentos alheios, exibe egocentrismo patológico e emoções superficiais, baixa tolerância à frustração, lida com dificuldade a descarga de sua agressividade, é ausente de remorso e não nutre qualquer sentimento de culpa. É, em geral, perverso, cínico, narcisista patológico e manipulador. Mente, rouba, abusa, trapaceia, negligencia sua família e parentes e coloca em risco sua vida e a de outras pessoas.

A perversidade não é uma perturbação psiquiátrica, mas fria racionalidade combinada à incapacidade de considerar a individualidade do outro. Para o perverso, o outro não existe como pessoa, mas como dono de uma qualidade que ele não possui, e da qual quer se apropriar. O perverso projeta na vítima seu fracasso moral. O bullying é um tipo de terrorismo psicológico consistente em repetidas condutas antiéticas cujo propósito é encurralar o indivíduo num gueto. O assediador segrega a vítima e corta os laços que a mantém conectada ao seu grupo, espezinhando-a até que se sinta inteiramente fragilizada e refém do agressor ou agressores. Esse sequestro psíquico rouba à vítima a sua escritura de pessoa, o seu estatuto original. A vítima do bullying precisa urgentemente de resgate. Abandonada à própria sorte, o fim da linha é a apatia, a frustração, a depressão, a demência mental, o desinteresse pelo emprego, pela vida social, escolar e familiar, o apego às drogas, à bebida, ao desregramento social e, por fim, o suicídio. Como dito, o bullying sempre existiu. Quem de nós não se lembra daquelas brincadeiras de mau gosto que colegas nossos (em alguns casos, nós mesmos) faziam nos tempos de colégio? Quem nunca pôs um apelido num colega focando a “graça” da pilhéria justamente numa qualidade ou defeito da vítima? Qual de nós nunca zombou daquele colega magricela, daquele sujeito alto demais, do que tinha orelha de abano, do narigudo, do gordo, do caipira, do “gênio” que sentava na primeira fila e só tirava dez em todas as matérias? Tudo isso era bulliyng, e a gente não sabia.

É claro que um maior poder de fiscalização das escolas ajuda a diminuir a incidência de bullying, mas é ilusão supor que isso acabe com a doença. De nada adianta fazer leis proibindo isto ou aquilo. Se lei acabasse com alguma coisa, não teríamos tantos assaltos, homicídios, roubo, sequestro, tráfico de drogas, corrupção, falências fraudulentas, violência doméstica, pobreza, abandono. Para cada um desses crimes há enxurradas de leis ameaçando com esta ou com aquela pena. Ninguém liga a mínima. O bulliyng é um processo de deterioração do indivíduo que começa em casa, numa simples brincadeira no play do condomínio, na praia, no clube, no trabalho, em qualquer grupo social. É uma doença social. Quando você for a um clube, a um restaurante, a um jogo de futebol, observe as pessoas à sua volta. Há um monte de sociopatas à espreita de um descuido seu para tornar-se o seu algoz, o que tem a chave da sua cela moral. Há um sociopata agora mesmo, ao seu lado. Talvez você até seja um deles.

Pode parecer terrível, mas o ser humano não tem salvação.



Mônica de Cavalcanti Gusmão

Professora de Direito.

monik@predialnet.com.br

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