segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Perigo! Escola.

Desencantados e sem perspectivas, crianças e jovens unem-se em gangues armadas e promovem uma onda inédita de violência escolar

BRUNO WEIS E IVAN PADILLA
ISTO É - de 1999
 
Na segunda-feira 26, ao sair para o trabalho, Maria das Graças Martins despediu-se da filha, Jandira, 14 anos, com dois pedidos. Queria que ela preparasse o almoço e que voltasse direto para casa depois da aula. A única menina de seus cinco filhos, Jandira só atendeu à primeira recomendação da mãe. Depois da saída, demorou-se nas imediações do colégio Cid Boucault, em Mogi das Cuzes, na Grande São Paulo, onde cursava a quinta série. Um tiro pelas costas atingiu seu coração, a 200 metros dos portões da escola. O homem que atirou, ainda foragido, tinha ido acertar contas com meninas que tinham brigado com sua irmã mais nova. Mais dois estudantes foram feridos, mas Jandira, que nem tinha participado da briga, morreu a caminho do hospital. "Era uma menina sem inimigos, gostava de estudar. Estamos horrorizados e queremos justiça, mas justiça terrestre", esbraveja o irmão mais velho de Jandira, o operário Luiz Carlos Martins, 27 anos, no enterro da irmã. "Quantas meninas terão de morrer aos 14 anos até o governo fazer alguma coisa?"

A revolta de Luiz Carlos revela o tom assustador de uma guerra que está sendo travada nas escolas públicas do País. Apenas no Estado de São Paulo, este ano, pelo menos dez estudantes foram assassinados dentro ou em frente a escolas, enquanto no ano passado nenhum caso de morte foi registrado. Alunos, professores, pais e autoridades tentam entender o que está acontecendo. Pesquisas de diversas instituições apontam parte da resposta: a própria violência da sociedade e a falta de perspectivas de futuro para a maioria dos jovens brasileiros. Como agravantes, a formação de gangues e o tráfico de drogas. O resultado é explosivo.

"Hoje, para morrer, basta olhar", garante o estudante Leonardo Lima, 16 anos, aluno da oitava série de uma escola estadual de São Paulo. O pedagogo Roberto Leme, presidente do Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo (Udemo), acredita que o problema é a falta de atividades extracurriculares nas escolas públicas. "Sem conseguir sobressair, os jovens se juntam em grupos e partem para a violência", explica. A Udemo faz, desde 1995, uma pesquisa anual sobre violência escolar. Interessada no tema, a Unesco realizou desde 1997 seis estudos. O primeiro – e único publicado até agora – mostra que, no ano passado, 1.888 brasileiros entre 15 e 29 anos morreram assassinados. Nas outras pesquisas foram ouvidos cerca de cinco mil jovens. "Sessenta por cento afirmaram já ter sofrido pelo menos uma violência", adianta o sociólogo Júlio Jacobo, da Unesco. "A principal causa da crise da juventude é o descompasso entre o desejo de consumo e a falta de meios para satisfazê-lo. Frustrados, eles buscam alternativas. Uma delas é a vida marginal", explica Jacobo.

"Eles vêm armados" 
Sobre a violência escolar, as pesquisas apontam outros motivos. "Jovens marginais também frequentam escolas. Numa entrevista, um garoto de 17 anos afirmou que ‘para ser bandido bom tem que estudar, se não é pé-de-chinelo’. O aumento da escolarização no Brasil incluiu uma população que estava fora da escola", afirma Jacobo. "Mais do que nunca, os professores têm que compreender seu papel formador. Precisam aprender a lidar com jovens violentos", recomenda.

Para as estudantes Jaqueline Gomes e Débora Dourado, ambas de 15 anos, alunas da escola João Goulart, na periferia de São Paulo, a violência é cotidiana. "O negócio está cruel, ainda bem que eu tenho uns amigos para me garantir. Se alguém mexe comigo, eu chamo eles e aí o tempo fecha, porque eles vêm armados", diz Jaqueline. Segundo as meninas, brigas ocorrem quase diariamente na frente da escola. "A confusão acontece quando vem galera de fora ou quando se encontram turmas inimigas. A gente, por exemplo, é skatista. E skatista não curte clubber (jovens que ouvem música tecno) nem lagartixa (os frequentadores de bailes românticos)", explica Débora. A intolerância, adicionada aos hormônios em ebulição dos adolescentes, pode levar a crimes como o que ocorreu há um mês em frente à escola Maria Luiza Martins, na zona sul de São Paulo. O estudante Luiz Gustavo de Oliveira, 16 anos, foi morto com seis tiros na saída da aula. "Ele morreu por engano. Mas os tiroteios estavam acontecendo direto. Ninguém tem mais coragem de ficar em frente à escola depois da aula", conta Cíntia Silva, 17 anos, ex-colega de Gustavo. Um dia após o assassinato, os alunos homenagearam o amigo pintando seu nome no muro da escola.

Diretores e professores também são vítimas da epidemia. Uma pesquisa da Universidade de Brasília e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação feita em 1.440 escolas estaduais de todo o País traz dados alarmantes. Em Mato Grosso, 34% dos professores entrevistados já tinham sido agredidos por alunos. Em Ribeirão Preto, no oeste paulista, há duas semanas o estudante Jair Galasso Filho, 17 anos, foi morto com um tiro na quadra de sua escola. Os diretores dos colégios da cidade promoveram um encontro na semana passada. Queixaram-se sobretudo do vandalismo. "Todos aqui já tiveram os pneus do carro furados ou os vidros quebrados ao menos uma vez", afirma Válter Colombini, presidente do Conselho de Educação de Ribeirão Preto.

Bomba! 
A professora de Matemática Maria de Fátima Pascarelli, do Cefet, escola técnica do Rio de Janeiro, enfrentou um ato pior do que vandalismo. Ela teve a mão direita esfacelada ao abrir uma carta-bomba há cinco meses. "Eu não fiquei revoltada, só muito triste. Sempre tive um relacionamento ótimo com os alunos. Mas é claro que é impossível ser amiga de todos", diz Fátima, que, em fevereiro, voltou a dar aulas em outra escola, depois de aprender a escrever com a mão esquerda. O professor responsável pela sindicância interna sobre o atentado recebeu ameaças. "Os professores temem por suas vidas e se calam", explica Dayse Calazans, ex-coordenadora do Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro. "Mas o pior é ver os estudantes desaparecerem, na maioria das vezes mortos pelo tráfico."

As drogas são um capítulo à parte. "Fumam crack dentro da escola, nos banheiros e na quadra e depois ainda assistem à aula", declara R.F.D, 18 anos, estudante de uma escola paulistana. No Rio de Janeiro, a proximidade de algumas escolas com favelas cria outras situações delicadas. O professor Augusto Conceição dirigiu durante seis anos o colégio Maranhão, localizado entre os morros do Engenho e do Urubu. "Quando os morros entravam em guerra, os alunos se agitavam, com medo das balas perdidas e preocupados com seus familiares em casa", afirma Conceição. No Ciep Avenida dos Desfiles, dentro do sambódromo carioca, as brigas são diárias. Os estudantes contam que traficantes do morro da Mineira, próximo ao local, invadem a escola durante tiroteios.
A cidade de São Paulo vive o conflito entre traficantes e estudantes numa geografia diferente. Em fevereiro de 1997 foi criado o Gape – Grupo de Apoio e Proteção à Escola – para reprimir a venda de drogas dentro e fora da rede de ensino. De lá para cá, houve 807 flagrantes, com a prisão de 1.031 traficantes. Na capital paulista, 1.953 policiais femininas fiscalizam 993 escolas estaduais. Na terça-feira 27, uma PM foi baleada na escola José Lins do Rego. Nas redondezas, os estudantes despistam. "É a lei do silêncio porque é zona sul, é embaçado", diz o estudante Paulo de Souza, 18 anos.

Pesquisas apontam que os colégios com mais aparato de segurança são os mais violentos. Em busca de prevenção, a Prefeitura do Rio criou há três anos o Grupo Ronda Escolar, com 145 policiais, professores e educadores. Eles percorrem, diariamente, 25 escolas do município e promovem debates. Em Belo Horizonte, onde nas últimas duas semanas pelo menos oito bombas de fabricação caseira foram detonadas em escolas estaduais, começa a operar na próxima semana a Divisão de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente, ligada à Secretaria de Estado de Segurança Pública. Os mineiros estão assustados. Na quinta-feira 29, uma passeata mobilizou pais e alunos em frente à escola municipal Francisco Campos, no bairro Tupi.

Espancamento  
As famílias têm medo. "Pensei até em tirar minha filha da escola", admite Marina Uemura, mãe de uma aluna do colégio Osvaldo Aranha, em São Paulo, onde há um mês Everaldo de Almeida, 16 anos, foi espancado por 30 pessoas, colegas e estranhos, com tacos de beisebol e skates. Com traumatismo craniano, ainda está internado. A sociedade procura culpados, mas ninguém assume a responsabilidade. "É preciso que cada um, em vez de olhar sua árvore, olhe para a floresta. Só trabalhando juntos é que podemos combater um problema dessa magnitude", defende Rose Neubauer, secretária de Educação do Estado de São Paulo. Numa tentativa de reduzir a hostilidade, a secretaria vai abrir escolas estaduais à comunidade nos fins de semana. "Ao trazer a população, podemos incentivar os pais a atuar e afastar os traficantes", acredita Rose. Iniciativas como essa podem ser o começo do fim dessa guerra juvenil.

Colaboraram: Chantal Brissac (SP), Valéria Propato e Clarisse Meireles (RJ)


Tempo de guerra
Em quatro meses, 1999 já registra um número recorde de mortos e feridos em colégios

16 de fevereiro Renato dos Santos Pinto, 16 anos, foi fuzilado com cinco tiros enquanto jogava bola no pátio do seu colégio, na zona sudoeste de São Paulo. O estudante morreu.

22 de fevereiro Um aluno de 17 anos de uma escola de Serrana, interior de São Paulo, é morto ao levar quatro tiros no rosto, em frente à escola. O principal suspeito do crime é outro aluno, de 15 anos.

5 de março Os estudantes Ânderson Ribeiro, 16 anos, e Israel Menezes, 17, são assassinados nas redondezas da escola Amélia Nogueira, em São Paulo, onde estudavam.

11 de março A inspetora de alunos Iraí da Silva é baleada na escola Caetano Mammana, na zona leste de São Paulo. Cinco tiros foram disparados em direção ao colégio.

24 de março Everaldo de Almeida Vieira, 16 anos, aluno da escola Osvaldo Aranha, zona sul de São Paulo, é espancado dentro do colégio com tacos de beisebol e skates por um grupo de 30 pessoas. O estudante sofreu traumatismo craniano e até hoje está internado.

25 de março Luiz Gustavo de Oliveira, 16 anos, é morto em frente ao muro da escola Maria Luiza Martins, em São Paulo, por engano. Os assassinos procuravam um garoto com o braço engessado e atiraram seis vezes contra Gustavo, que estava com a mão enfaixada.

29 de março O estudante Roque de Souza, 22 anos, é assassinado na saída da escola Vereador Durval dos Santos, em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. O suspeito do crime tem 16 anos.

8 de abril Um estudante de 11 anos é baleado na escola General De Gaulle, em São Paulo, por outro aluno que tinha levado um revólver calibre 38 para a escola. A arma disparou e atingiu o colega na perna.

13 de abril Um estudante de 14 anos, aluno da escola Hernestino Lopes da Silva, em São Paulo, é morto com três tiros em frente ao colégio.

15 de abril Francisco do Carmo, 18 anos, é baleado na coluna na quadra da escola Irmã Dulce, em São Paulo, por um guarda metropolitano. Ele pode ficar tetraplégico.

19 de abril Jair Gallasso Filho, 17 anos, é morto com um tiro no peito durante a aula de Educação Física na escola Prof. Rafael Franco, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Outra aluna é baleada no pé.

22 de abril O estudante Sílvio dos Santos é esfaqueado dentro de uma sala de aula na escola Maria Walter de Assis, em Serrana, interior de São Paulo.

26 de abril A estudante Jandira Martins, 14 anos, é assassinada em frente a sua escola, em Mogi das Cruzes (SP). Em São Paulo, uma policial militar é ferida com um tiro na porta da escola José Lins do Rego.

27 de abril Um garoto de oito anos leva para a escola em São Paulo um revólver calibre 38, carregado. A arma era de seu padrasto e ele queria mostrá-la aos colegas.

29 de abril Jeferson Rocha, 15 anos, é apanhado com uma arma na escola Santo Afonso em Belo Horizonte. Queria defender-se de uma gangue que o estava ameaçando.

"Já ouviram falar em valores?"
Quando a professora Marisa Bruno Russo Negrizolo, 49 anos, foi dirigir a escola municipal Mathias Ayres, de 1.300 alunos de ensino fundamental e secundário, na Freguesia do Ó, em São Paulo, não encontrou um centímetro quadrado de parede que não estivesse pichado. O cenário era a parte visível de uma agressividade permanente. Marisa, que pautou sua carreira pelo desejo de oferecer aos alunos o mesmo que gostaria que os demais adultos garantissem a seus filhos, teve o que ela chama de "um clique". Pôs em prática um programa de educação baseado em valores religiosos ecumênicos, composto de doses diárias e rápidas de reflexão. Com a ajuda de clipes, vídeos, músicas e leituras, ela e sua equipe conversam diariamente com os alunos sobre valores. "Nós não fazemos aquelas palestras sobre drogas e sobre educação sexual porque eles já estão carecas de ouvir falar e não adianta nada", ela diz. "Também tratamos de não chatear. Quinze minutos de concentração é o máximo que um ser humano normal aguenta", estabelece. Seu método de atuação inclui também disponibilidade de toda a equipe para ouvir os jovens que desejam conversar, convocação – "nem que seja por aerograma" – de mães de alunos que faltam e três encontros anuais com os pais. Com um salário de R$ 1.800, às vésperas de se aposentar, a diretora conseguiu o que queria. "Minha escola é amada. Aqui não tem evasão e você não encontra mais um só rabisco nas paredes", conta, orgulhosa.

Guerra, mentiras e videogame
"Precisamos ensinar nossos filhos que divergências se resolvem com palavras e não com armas", afirmou o presidente Bill Clinton ao país, horas depois do massacre na escola Columbine, perto de Denver, Colorado. As imagens dos kosovares trucidados por engano por bombas da Otan, numa guerra aprovada por Clinton, talvez ajudem a explicar a violência dos jovens americanos. Os Estados Unidos têm dado exemplos perigosos a seus adolescentes. Mas há outros bodes expiatórios para os surtos de violência escolar. Eles vão dos videogames à cultura da competição, que divide o mundo em vencedores e perdedores. A genética também é invocada para explicar os desvios, mas muitas vezes se mistura com racismo. O fato de que outras gerações e outros povos viveram influências semelhantes sem massacrar seus colegas de classe só faz aumentar a perplexidade. Para uma sociedade que adora chavões, seria oportuno lembrar que "não existem coincidências", e que "Deus está nos detalhes". Nos últimos três anos, houve sete chacinas escolares. Em todas, os assassinos são brancos, tinham acesso fácil a armas e moravam em subúrbios classe média, numa região conhecida como "cinturão bíblico". "O que se vê aqui é a conhecida revolta adolescente levada a radicalismos.", diz a psicóloga Loren Bisk, que lida com assuntos religiosos. "O fundamentalismo religioso explica o satanismo infantil, comum aos criminosos. Trata-se de uma clássica reação aos parâmetros da sociedade em que vivem."

Osmar Freitas – Nova York

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