terça-feira, 17 de novembro de 2015

Margarida Fonseca Santos e a coleção `A Escolha é Minha´: «Existe um medo de falar sobre coisas complicadas»

Por Pedro Justino Alves
Margarida Fonseca Santos e a coleção `A Escolha é Minha´: «Existe um medo de falar sobre coisas complicadas»


 




ABooksmile começou uma nova coleção no seu catálogo, «A Escolha é Minha», com o primeiro título a recair na escrita de Margarida Fonseca Santos. «Bicicleta à Chuva» aborda o bullying, mas também a amizade e a coragem, numa estrutura narrativa bastante apelativa tendo em vista o público alvo.

Aproximar os mais jovens dos seus problemas é o principal foco da nova coleção da Booksmile. O “cartão de visitas” de Margarida Fonseca Santos assim demonstra, com a autora a retratar um dos problemas mais atuais do momento, o bullying, que nunca é demais falar, como a autora defende: «Pode parecer que já se falou muito do tema, mas continuo a sentir que há um enorme desconhecimento acerca disto, tanto em termos de gravidade como nas causas, soluções e consequências.»
Inaugura a coleção «A Escolha é Minha». A editora explicou o que pretende oferecer em concreto com esta coleção? Qual o objetivo da mesma?
A ideia, quando se combinou esta coleção com a editora, foi tratar de assuntos difíceis, mas que não deixam de ser reais e presentes na vida dos jovens hoje em dia. O principal objetivo é dar conforto a quem está numa das situações tratadas, mas igualmente pretende-se sensibilizar os jovens que, estando perto destas situações, podem ajudar a resolver os problemas. O primeiro trata do bullying, o segundo do alcoolismo, e por aí adiante.
E que «Escolha» é essa?
Não foi fácil encontrar este título para a coleção, mas aquilo que desejo é que passe esta ideia: por muito difíceis que sejam os momentos ou os problemas, a escolha existe, sempre. Eu (tu/nós) escolho como reagir face a esses assuntos, escolho agir ou afastar-me, escolho denunciar ou ajudar. Existe sempre uma escolha, que é de cada um de nós. Por muito difícil que seja, está nas nossas mãos decidir o que fazer.
Tem uma vasta experiência em escrever livros infantojuvenis. O que mudou nos últimos anos no género?
Tem havido algumas mudanças que me entristecem. Procura-se seguir modas e padrões de comportamento, a maior parte das vezes americanizados e cheios de um egocentrismo constante. Pensa-se no que «vende mais». E existe um medo de falar sobre coisas complicadas.
Na minha opinião, uma das mudanças verificadas é a escrita ter ficado muito mais realista, por exemplo. Falta um pouco de “fantasia” aos textos de hoje ou o mundo exige outra postura dos escritores?
Não sei se concordo completamente com isso. Está a escrever-se muita ficção fantástica de grande qualidade. A realidade, por outro lado, aparece muitas vezes camuflada por histórias de êxito fácil. Não é um equilíbrio simples, de todo. Acredito que há espaço para todas as escritas e que, no fantástico, se fala muito mais a sério da realidade do que noutros textos.
O bullying é hoje um dos temas centrais dos livros infantojuvenis. O tema é aliás retratado no seu livro. Nunca é demais alertar os mais novos para este cancro da sociedade escolar?
É o tema do livro, o tema central, sim. Foi uma decisão conjunta começar por aí, minha e da editora. Pode parecer que já se falou muito do tema, mas continuo a sentir que há um enorme desconhecimento acerca disto, tanto em termos de gravidade como nas causas, soluções e consequências. Por causa de outro livro, para mais novos, «Uma questão de azul-escuro», tenho tido conversas muito intensas sobre este tema e percebi que precisava de voltar a isto nesta coleção. Não se pensa, por exemplo, no agressor, apenas se castiga, e isso é injusto. Raramente se fala da culpa associada à vítima que se cala perante a agressão, e é importante saber isto.
O bullying de Valdomiro acaba por ser justificado devido ao comportamento do pai, propenso a bebida, violento, desempregado, etc. Não questiono que a família disfuncional é uma das caraterísticas primárias do bullying, mas a verdade é que raramente os escritores abordam o tema da perspetiva de um jovem oriundo de uma família “normal”, quando alguns estudos recentes provam que o bullying provocado pelos jovens da classe média-alta é cada vez maior. Porquê?
Não se trata, do meu ponto de vista, de dizer que só acontece nas famílias disfuncionais, nada disso. O que tenho sentido que falta explorar é esta causa-efeito quando os ambientes familiares são disfuncionais. Como queria que o desfecho resultasse numa atividade conjunta, que distraísse os grupos da violência dando-lhes alternativas, teria de me focar num gangue. Isso é mais típico em famílias mais desfavorecidas. Podia ter invertido a posição das famílias, mas então a história teria sido muito diferente, pois uma vítima numa família que a esquece dificilmente tem coragem para lutar. Muito provavelmente, cairia no mesmo modelo. Da mesma forma, um agressor numa família normal, se assim lhe quisermos chamar, onde existe compreensão e carinho, significaria, muito provavelmente, a existência de uma perturbação mental, e não era disso que queria falar. Mas não me esquecerei deste seu comentário, ficará na lista de assuntos a tratar.
A amizade e a coragem são os dois fatores chaves para impedirmos o bullying?
Acredito que sim. A amizade para apoiar e sossegar; a coragem para romper com o padrão, seja de vítima ou de agressor, pois é necessário dar passos complexos e, muitas vezes, dolorosos. É muito interessante ver como os jovens reagem a isto: a maior parte esquece-se de questionar os que entristecem ou começam a ter más notas, ignoram as razões de tudo isso. Temos mesmo de andar mais atentos.
Curiosamente, a amizade que muitos acreditam que poderá ficar para segundo plano num futuro não muito longe devido a utilização das novas tecnologias, que cada vez mais isolam os mais novos aos ecrãs do seu telemóvel. Como acha que devemos recuperar a “amizade do contato”?
Como deve imaginar, acredito que o podemos fazer todos os dias, cada um no seu plano. O meu é o dos livros. Tenho recusado, por exemplo, escrever romances juvenis que se baseiam nas redes sociais, em trocas de mensagens. Para mim, esta é uma preocupação gigantesca. No outro dia, parando para dar passagem a estudantes numa passadeira, reparei que nenhum conversava, iam todos agarrados aos ecrãs. Por isso, no que depender da minha escrita e do meu trabalho no treino da mente, estarei sempre a alertar para o perigo de se perderem as ferramentas sociais e de relacionamento (linguagem não-verbal, comunicação eficaz, avaliação de estados emocionais, e por aí adiante), de nos isolarmos uns dos outros e dos custos que isso traz no futuro. Não é também de relegar o impacto que isto tem na capacidade de atenção e memorização, e já estamos a sentir os efeitos disto. Luto com as armas que tenho, neste caso, através do que escrevo, polvilhando os textos com esses pequenos detalhes emocionais, fugindo de adjetivar, mas dando pistas de como se comportam as personagens e obrigando o leitor a perceber qual a emoção que está por trás disso.
Mas até que ponto um livro pode fazer “acordar” um jovem para o assunto?
É exatamente através disto que acabei de referir, «mostrando» comportamentos e reações, levando o leitor a adivinhar a que correspondem, para que se mantenha atento, deixando antever, em trocas de olhares, hesitações, frases caladas, o que vai dentro de cada personagem/pessoa. Muitas vezes, para conseguirmos ajudar alguém, temos de procurar esses pequenos sinais. É um caminho fascinante e muito eficaz!
Apresenta uma estrutura narrativa bastante interessante em «Bicicleta à Chuva», alterando frequentemente o narrador. Como surgiu a ideia? E porque acreditou que esta forma era a mais correta para contar a sua história?
Já venho, há algum tempo, a escrever na primeira pessoa e com vários narradores. Isto prende-se com um dos maiores fascínios do relacionamento humano: se quatro pessoas viverem um episódio, haverá quatro relatos diferentes. A verdade é filtrada pelas nossas emoções, convicções, medos e expectativas. Gosto muito de mostrar diferentes pontos de vista de uma mesma realidade e achei que, para esta coleção, seria um detalhe importantíssimo. Assim, podemos ver as hesitações, dúvidas, anseios e medos, tanto de um como do outro, assim como os momentos mais felizes, sempre filtrados pelas suas próprias maneiras de ser. Para mim, escrever assim é um desafio extraordinário.
Outro dado a destacar são os diálogos, muito presentes na narrativa, por exemplo. Tenho a ideia de que os diálogos são o modo mais fácil de chegar aos mais novos. Uma impressão acertada?
Os diálogos são o modo mais fácil de contar muito dizendo pouco, e isso é verdade para toda a literatura. Mas tem razão, os jovens gostam de ler diálogos. Contudo, nos diálogos, esconde-se muito do que ficará subentendido apenas, podemos «observar» reações e sentir a tonalidade da voz de quem fala. É outro recurso de que não abdico, gosto imenso de escrever diálogos assim.
Onde gostaria que esta coleção chegasse?
Gostaria que chegasse ao lado emocional dos jovens, que os fizesse sentir, refletir e decidir por si mesmos – acredito que é uma das partes mais difíceis na escrita para crianças e jovens, isto de deixar espaço para que pensem por si e decidam concordar ou rejeitar aquilo que contámos. Basta-me que os deixe a pensar, já terei atingido o principal objetivo, mas ver se consigo!
Gosta de andar de bicicleta? Mesmo à chuva? Qual a sua relação com este veículo de duas rodas?
Apetece-me dizer «gosto muito» de andar de bicicleta, mas terei de falar no passado. Não tenho podido andar, pois o esqueleto avariou-se e anda zangado com a vida… Mas sim, é um veículo que acarinho muito. Aliás, o meu marido, em Lisboa, anda sobretudo de bicicleta, mesmo à chuva, e o título surgiu num desses dias de temporal.

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