domingo, 29 de julho de 2012

A violência nas residências estudantis fica fechada entre quatro paredes

Há episódios de violência nos alojamentos partilhados pelos universitários. No entanto, as queixas ficam guardadas, apesar de a praxe poder configurar uma forma de bullying


As histórias de violência nas residências académicas têm rostos que não querem nomes. Há revolta, ansiedade, depressões. Muita tristeza. O
bullying não fica à porta das escolas secundárias. O ensino superior também não escapa às lutas pelo poder. Os serviços de Acção Social das universidades garantem que não há problemas graves que obriguem a usar mão de ferro. A Linha SOS-Estudante e o Gabinete de Apoio ao Estudante da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, por exemplo, não têm recebido queixas de violência nos alojamentos académicos. No entanto, há casos que adormecem em silêncio.

Ana, nome fictício, não quer nomes, nem localizações exactas. Está cansada, deprimida, com acompanhamento psicológico. Quer terminar o curso e emigrar. Quer esquecer o que tem vivido nos últimos anos nas residências universitárias de Lisboa por onde tem passado. "Nas residências, onde seria suposto haver sossego para se estudar, existe um ambiente de absoluto deboche e falta de respeito para com os colegas", refere. O barulho, as atitudes de segregação e as festas até tarde incomodam-na. "A violência, muitas vezes, é feita de palavras que, às vezes, doem muito mais que um soco", diz. Ana vive agora sozinha num quarto de uma residência universitária.

Durante três anos, partilhou um quarto. "Três anos sem sossego a aturar uma colega de quarto que fazia barulho até de madrugada." Queixou-se à responsável pela residência e aos serviços de Acção Social. Mas ficou tudo na mesma. "Comecei a ser posta de lado, a ser insultada por algumas residentes e, moral da história, fui acusada de não saber viver em comunidade, quando o que só quero é ter sossego para estudar e terminar os meus estudos com sucesso."

Ana andava desesperada e faltou pouco para ir à polícia. Lembra um episódio: "A minha colega entra no quarto, faz imenso barulho, acende a luz. Saturada, chamei-a à atenção, não havia necessidade de acender a luz, quando temos candeeiros de cabeceira e com luz forte o suficiente. Continuou a fazer tudo como se não me tivesse ouvido. Levantei-me e desliguei a luz, acedendo a outra, ela voltou a ligar, daí surgiu uma discussão."

Ana ficou nervosa, saiu do quarto, e a colega chamou a responsável. "Chegaram as duas e a discussão continuou. Agarrou-me no pulso e já ia com a outra mão para me bater na cara. Só tive tempo de me desviar. Se acontecesse qualquer coisa, iria à polícia, nunca poderia responder a este acto de agressividade da mesma maneira, pois perdia a razão. E a responsável pôs-se do lado dela."

Mudou de residência por não ter condições de suportar o alojamento sem apoio. "Mas os insultos e as faltas de respeito continuam", garante. Escuta coisas indelicadas a seu respeito. "É óbvio que a depressão veio daí. Quem não dorme bem e é constantemente molestado e incomodado sofre consequências." Ana anda a ser acompanhada por uma psicóloga e por um psiquiatra.

"Terreno com potencial"

Maria do Rosário Pinheiro, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, coordenadora da licenciatura em Ciências da Educação, é responsável pelo Gabinete de Apoio ao Estudante (GAE) da faculdade que, por ano, faz cerca de 200 atendimentos. Situações de violência física ou psicológica em residências universitárias de Coimbra não têm batido à porta do gabinete que coordena, mas foi ali que este ano deram entrada denúncias que levaram à suspensão temporária da praxe de gozo em todas as universidades de Coimbra e que culminou na suspensão de oito alunos de Ciências da Educação. "Nenhuma praxe é inconsequente, qualquer praxe vai ter um impacto", refere.

Na sua opinião, a universidade é um espelho do que se passa na sociedade, um barómetro da comunidade. E se há disputas, violência, desequilíbrios "cá fora", também os há no universo académico. "As residências são um terreno com potencial para que as provocações, para que as lutas assentes na desigualdade de poder, possam acontecer", afirma. Várias residências académicas têm os seus líderes e o ambiente pode proporcionar desentendimentos, embora não haja uma única queixa nesse sentido no GAE da faculdade coimbrã. "As pessoas estão muito expostas a essas realidades, a esses desequilíbrios, a desavenças com os colegas de quarto, com os colegas de piso." O bullying não fica à entrada do mundo universitário e, muitas vezes, não pede licença para avançar. Maria, também nome fictício, sabe que assim é. É uma das melhores alunas do seu curso. Entrou numa residência universitária de Coimbra em Setembro do ano passado. No início, tudo corria bem. "Jantávamos juntas. Mas, a partir do nada, deixaram-me de me falar, de me cumprimentar", conta. A comida começou a desaparecer da arca frigorífica comum. Fez queixa e a delegada da residência colocou um aviso. Maria tentou perceber o que se passava, obteve como respostas silêncios e a mesa cheia quando queria sentar-se para jantar. "Quando queria aquecer comida, barravam-me a passagem para o microondas, e sentavam-se todas à mesa para não ter lugar", recorda. "Não percebi por que deixaram de me falar. Pergunto, mas não me respondem, simplesmente ignoram-me." Maria vai tentar mudar de residência. "Sinto-me mal, mas tenho de me sentir bem, porque não tenho nenhuma hipótese de suportar um quarto sem ser numa residência", desabafa.

Essa desigualdade de poder entre vítima e provocador, que caracteriza o bullying, nem sempre é fácil de identificar nas residências. Tudo porque, sustenta Maria do Rosário Pinheiro, "pode acontecer de uma forma "cosmetizada", escondendo-se a violência com camadas de outros comportamentos legitimados pelo contexto social e académico, como é o caso da competitividade entre os alunos e mesmo da praxe". Volta-se à praxe que, em seu entender, "pode ser uma forma de bullying entre estudantes do ensino superior". "As praxes, porque levadas a cabo num contexto escolar - um ritual dos estudantes para estudantes - e porque assentes numa desigualdade de poder, entre os "doutores" e os caloiros, quando se caracterizam por um comportamento agressivo, intencional e sistemático, preenchem os critérios de bullying".

Maria do Rosário Pinheiro lembra que o problema da violência entre pares no mundo académico entrou nas preocupações da sociedade portuguesa, quando os jovens americanos começaram a matar nas universidades. E a realidade que aparecia nos ecrãs das televisões demonstrava que eram sobretudo as vítimas de bullying que pegavam em armas e matavam colegas e professores. Neste momento, a comunidade científica centra as suas atenções nos comportamentos das vítimas provocativas. "Quando há um estudante que diz que sofre, que não se consegue adaptar na residência universitária, que é ostracizado, é precisamente esse aluno que nos deve preocupar. Mais verdade do que aquilo que diz é aquilo que sente", avisa.

Luís, nome fictício, é antipraxe e mora numa residência académica em Coimbra. Conta as praxes que viu onde mora. No dia do julgamento, na véspera da Queima das Fitas, quando os caloiros são praxados pela última vez, é feito um jantar. Depois, há praxe. "Os alunos do 1.º ano, independentemente do número, são fechados num polibã, todos apertados. E os não caloiros atiram-lhes com coisas, como polpa de tomate." "Um dos caloiros teve de ser examinado, porque entrou-lhe piri-piri para o olho." Seguem-se cortes de cabelo. "Cortam o cabelo dos caloiros e têm atitudes particularmente agressivas e perigosas. Muitos dos que praxam estão completamente bêbados e não têm noção do que estão a fazer", refere.

Em Coimbra, os caloiros podem recusar a praxe. Mas, adverte Luís, não há uma liberdade real. "A opção por não participar significa a não socialização com algumas pessoas." É, portanto, "uma liberdade condicionada".Universidades sem registo de queixas

Nos últimos anos, os serviços de acção social das várias universidades não têm recebido queixas relativas a episódios de violência ocorridos nas residências académicas. Na Universidade de Coimbra (UC), o ano lectivo termina com registo de apenas dois casos de violência entre estudantes, ligados ao excesso de álcool.

Os Serviços de Acção Social advertiram oralmente os alunos. O regulamento em vigor nas 14 residências da UC é omisso quanto às praxes. Refere apenas que "os residentes devem abster-se de praticar actos impróprios da normal vida em comum". Na Universidade do Porto, a praxe não é permitida nas dez residências universitárias. Segundo Isabel Basto, do departamento de Acção Social, "nos últimos anos, nunca aconteceu nada de especial gravidade".

Na Universidade do Minho também não há registos de violência nas 10 residências situadas em Braga e em Guimarães. Carlos Silva, do Serviços de Acção Social garante que não há praxes nesses espaços. As queixas mais frequentes dizem respeito a "pequenos focos de barulho". Na Universidade de Aveiro, também não há queixas registadas. O regulamento estipula que nas residências da academia não é permitido praxar.

Por Sara Dias Oliveira

Fonte: Público PT

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