domingo, 16 de abril de 2017

Com a palavra, os adolescentes

O TEMPO
Alex Bessas


Um grupo de garotos e garotas da capital discute a polêmica série da Netflix que aborda bullying, estupro e suicídio na adolescência

Desde que foi lançada no último dia 29 de março na plataforma streaming Netflix, a série “13 Reasons Why” tem despertado reações calorosas. Abordando temas espinhosos como bullying, ciberbullying, estupro e suicídio na adolescência, o programa – inspirado no livro “Os 13 Porquês”, de Jay Asher, cuja trama mostra o cotidiano de uma escola após a adolescente Hannah Baker tirar a própria vida – tem alimentado as discussões nas timelines das redes sociais. Alguns a acusam de ser irresponsável na forma como trata a questão do suicídio, outros a elogiam por levantar a questão e estimular a busca de auxílio – o CVV (Centro de Valorização da Vida) apontou o aumento de 445% no número de e-mails com pedidos de ajuda após a estreia.
Mas e os adolescentes? O que pensam? Convivendo com situações similares às abordadas em “13 Reasons Why”, eles a consideram necessária. E se nas redes sociais a série é assunto onipresente, a realidade se repete nas salas de aula. “Marcante”, “impactante” e “real” são alguns dos adjetivos a que garotos e garotas do ensino médio da Escola da Serra recorreram ao analisar a série em uma conversa com o Pampulha.
Sentados em círculo, o grupo de seis adolescentes com idades entre 15 e 18 anos se mostrava interessado em debater. Entre risadas, confissões e falas atropeladas, indicaram o desejo de discutir com uma certa ansiedade por serem ouvidos – tanto que, em uma hora de conversa, nenhum dos temas se esgotou.
“Você se sente como se fosse a Hannah (uma das personagens centrais da série), como se também estivesse passando por tudo aquilo”, diz, categórico, Gabriel Bruscia, que tem a mesma idade da protagonista que sofreu com o isolamento e a solidão após ter fotos íntimas divulgadas nas redes, o que iniciou um ciclo vicioso de ocorrências de assédio e abusos.
“A gente passa por situações diferentes, com densidades diferentes, mas todo mundo que já passou pelo ensino médio vai se identificar com a série”, completa Marcelo Lopes, um ano mais novo. “Quem não vive no ensino médio não entende”, arremata Regina Souza, também de 17 anos. Do grupo, os três são os mais falantes. Também são os mais envolvidos com a série.
Por sua vez, Ana Luisa, 15, não economiza ponderações ao falar sobre “13 Reasons Why”. “Achei muito forte e tem muitos gatilhos (cenas capazes de desencadear processos e reações psicológicas em quem as assiste). Na minha opinião, tem algumas cenas desnecessárias, dava para tratar de forma diferente”, critica ela em relação aos episódios que representam graficamente estupro e o suicídio em cenas explícitas, lembrando que o programa se destina ao público adolescente.
Mas Bruscia, imediatamente, reage. “Eu discordo. Acho que a cena (se referindo à representação da morte de Hannah), mesmo sendo muito explícita, não é romantizada, é para chocar mesmo!”
Com a dinâmica de um debate, Anita Carrieri, 16, questiona o colega. “Você disse que a série não romantiza o suicídio?”, inquire. Ele argumenta: “O que prova que não romantiza são as cenas dos pais, sempre muito tristes”. Anita retruca: “Mas isso é para quem ficou, para os sobreviventes”, sugere. “A série ignorou os conselhos de psicólogos, psicanalistas, de especialistas. Tem muitas cenas fortes que podem provocar pessoas depressivas”, conclui Ana Luisa.
O debate se alongaria mais, não fosse a intervenção bem-humorada de Marcelo Lopes. “No momento em que passou uma das cenas, eu estava comendo um sanduíche e fiquei assim...”, disse, arregalando os olhos e abrindo a boca. “Por uns 15 segundos”, completou, enquanto todos riam.
Muito além de discutir os méritos ou deméritos da série produzida pela atriz e ídolo teen norte-americana Selena Gomez, os adolescentes se identificam com personagens e situações retratadas em “13 Reasons Why”. “Eu sempre fui uma pessoa muito extrovertida na escola, da fazer palhaçada. Mesmo assim eu me identifiquei várias vezes com vários personagens da série em diferentes situações”, afirma Marcelo. Episódios de bullying, por exemplo, são elos entre a vida cotidiana e a obra de ficção. Entre os seis, todos já sofreram, conhecem quem já sofreu ou presenciaram a prática.
Reticente a participar mais da conversa, Theodoro Silva só se sente confortável para dar sua contribuição neste ponto. Ele lembra ter sofrido bullying por cerca de dois anos. A situação causou pendências escolares. Em vista do que estava acontecendo, sua família optou pela mudança de escola. Depois de um ano sem mais problemas, “por coincidência, essas pessoas que faziam bullying comigo entraram na mesma escola que eu entrei”. O suplício durou mais seis meses. “Eu meio que não conseguia ficar lá e arrumei um jeito de ser expulso”. Agora, na Escola da Serra, Theodoro se encontrou. “Aqui é todo mundo diferente”, elogia.
A experiência de Marcelo, por outro lado, vai em outro sentido. “Entre meus amigos, todo mundo cometia e sofria bullying – mas apenas entre nós. Isso moldou o que eu sou. Então, hoje, em relação a agressões verbais por exemplo, eu lido de uma forma bem tranquila”. Apesar disso, o adolescente se mostra consciente. “Do mesmo jeito que o bullying em uma pessoa pode não provocar nada, em outra pode acontecer, como foi com a Hannah...”.
Como em “13 Reasons Why”, os assuntos se misturam. De bullying, o papo se encaminha para o assédio. Daí, para vazamento de fotos íntimas. “Em vez de repassar, você tem é que dar esporro”, diz Marcelo, ponderando que a maioria não o faz por insegurança e medo de ser incluído em um ciclo vicioso de bullying e agressões.
Boa parte da ansiedade com que falam se explica pela vontade represada de discutir os delicados temas trabalhados pela produção da Netflix. “A gente quer falar, mas é complicado. Na minha escola antiga – mudei para cá este ano – era impossível pensar em ter uma conversa desse tipo”, pontua Ana Luisa. “Mas é importante. De repente, se a gente conversasse mais sobre essas coisas, se falasse disso desde criança, todo mundo ia saber como não ser babaca”.
Marcelo, por sua vez, lembra o receio de ser mal interpretado. “Às vezes, você só quer entender, mas falando em casa ou na escola, eles (os adultos) podem ficar muito preocupados... Se você falar sobre alguns assuntos, podem acreditar que aquilo está acontecendo com você”. Por isso, o rapaz prefere conversar entre amigos.
Os seis adolescentes consideram que, sim, é importante levar este debate para o ambiente escolar. “Se é aqui que muitos destes fatos acontecem, é aqui que precisam ser discutidos”, aponta Anita Carrieri. “A escola meio que molda a nossa personalidade. Então, é importante falar sobre tudo isso. Há até aqueles que não têm noção do que estão fazendo, que não sabem o que é um assédio, o que é bullying”, concorda Regina. “Se tem lugar em que você convive com muita gente diferente, este lugar é a escola. Então, este é o ambiente para aprender a lidar com a diferença”, observa Ana Luisa, vencendo a timidez.
Série dá dicas cruciais, mas também peca
A psicóloga e psicopedagoga Luciana Ramos, 47, tem bagagem e história no meio escolar. Há 20 anos ela atua na área. Inicialmente, passou por colégios tradicionais, mas, desacreditada da metodologia que classifica como “opressiva”, abandonou as salas de aula para se dedicar a sua clínica. Mas Luciana não ficou muito tempo longe do ambiente das escolas. Há um ano e três meses, ela está na Escola da Serra.
Com tantos anos de experiência, a profissional sabe da importância de acompanhar séries, livros e outras tendências adolescentes. E, com eles, sabe aprender. Enquanto recebia o Pampulha, o telefone tocou. Rápido, Luciana tomou o fone e tirou do gancho. “Antes mesmo de ver a série ‘13 Reasons Why’, eu já mantinha o telefone fora do gancho quando estava em atendimento. Agora, depois de assistir, eu sempre tiro para qualquer conversa”, explica a psicóloga, em referência a um episódio do programa em que a insistência de chamadas ao telefone impede Hannah Baker de procurar ajuda.
Não é só Luciana quem reviu e reforçou hábitos depois de travar contato com a produção da Netflix. Ela mesma conta que, desde a estreia, três alunos a procuraram preocupados com algum colega.
Turbulência
Psiquiatra da infância e adolescência, Luciana Nogueira de Carvalho, compara o adolescer a períodos de turbulência em voos. “É preciso sobreviver às inúmeras inseguranças desse período, marcado pelo novo, pelo encontro com a sexualidade, com as mudanças corporais e, inevitavelmente, pelo encontro com as drogas”, analisa. Para ela, “a série ‘13 Reasons Why’ chega em boa hora. A violência entre nós é epidêmica e não há outra maneira de enfrentarmos o problema do suicídio entre jovens se não for escutando o que eles têm a nos dizer”, pontua.
De fato, os números são preocupantes. Em todo o mundo, o número de jovens mortos por consequência do suicídio é maior que os vitimados por consequência do HIV, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas de 2015. Especificamente falando em Brasil, a taxa de jovens que tiraram suas vidas aumentou 15,3% entre 2002 e 2012, como indicou o Mapa da Violência de 2014.
A alta de casos de suicídio foi sentida pelo Centro de Valorização da Vida (CVV). Há 21 anos voluntária do serviço, Ortalia Mendes, 71, comenta que há 15 anos a faixa etária que mais procurava pelo serviço estava entre os 18 e 35 anos. Na última década, no entanto, o espectro atendido se estendeu, não sendo mais incomum o atendimento de pré-adolescentes, de 12 anos, até idosos.
Nádia Laguárdia de Lima, professora do Departamento de Psicologia da UFMG, tem se dedicado a pesquisar a adolescência e as redes sociais. Organizadora do livro “Juventude e Cultura Digital” (Ed. Artesã), a pesquisadora lembra que, embora a segregação e violência sempre tenham existido, seu trânsito na internet potencializa a prática do bullying. “O efeito dessa migração é muito danoso. Essas imagens e dados têm maior alcance: se antes acontecia só dentro da sala de aula, agora a prática ganha eco no mundo inteiro”, afirma.
Tema espinhoso
Crítica de uma abordagem irresponsável de “13 Reasons Why”, ela lembra que é “perigosa essa ideia de culpabilização, de nomear responsáveis por casos de suicídio”. Nádia acredita que “os temas podem ser melhor abordados na escola e na família”. “A série atravessa uma gama de outros temas – discriminação, machismo, dificuldade de comunicação. É muito importante que a escola chame a responsabilidade de trabalhar esses tópicos, que são coisas que acontecem na escola”, indica.
Psiquiatra e psicanalista, Gilda Paoliello, 64, também se diz preocupada com a potencialização de danos no caso do cyberbullying. A profissional lembra que é importante que os pais estejam próximos dos filhos, saibam ouvi-los, orientá-los e até a ajudá-los a não valorizar ou a hiperdimensionar determinadas críticas que ouvem de colegas.
Gilda também aponta que os “exemplos bem-sucedidos vêm de escolas que promovem interlocuções e diálogos entre alunos e pais, por meio de eventos, palestras, reuniões transdisciplinares entre o corpo docente, alunos e pais”. Ela frisa que “nenhum tema deve ser evitado. O que é importante é a forma de abordagem”.
Crise adolescente

Insegurança Cerca de 18% dos meninos e 21% das meninas que estão no ensino médio no Brasil se consideram gordos ou muito gordos. Os dados citados são da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), realizada em 2015 pelo IBGE.
Bullying No espectro de 30 dias desde que foram entrevistados, 7,4% disseram se sentir humilhados e provocados na maior parte do tempo, enquanto 19,8% assumiram ter praticado bullying contra seus colegas, também de acordo com a Pense.
Invisibilidade Apenas 66,6% acreditam que os pais se preocupam com seus problemas ou preocupações. 
Violência A pesquisa ainda apurou a recorrência da violência. Um total de 23,4% dos entrevistados disse ter se envolvido em brigas no prazo de um ano.
Suicídio O Mapa da Violência de 2014 indicou que, entre 2002 e 2012, o índice de jovens e adolescentes que se mataram aumentou em 15,3% no Brasil.
Vamos falar sobre depressão na adolescência?
Alerta “Agressividade exagerada ou timidez que impede a socialização devem ser observados. Fracasso escolar importante, isolamento, dificuldade de se relacionar, são todos sinais de alerta”, indica a psiquiatra Luciana Nogueira de Carvalho. 
Ajuda Por sua vez, Gilda Paoliello lembra que “se os pais detectam sinais de mudanças nos filhos, devem abordar isso e abrir possibilidade de ajuda profissional, junto à ajuda afetiva indispensável”.
Tabu Com objetivo de vencer o silêncio quando o assunto é depressão, a Rede de Psicoterapias leva o tema para a roda de conversa na praça da Liberdade. Marcado para o dia 29 (sábado), o evento tem mais de 5.000 interessados no Facebook. Amanda Ferraz, integrantes da organização, comenta que há grande procura entre adolescentes, muito em função de “13 Reasons Why”.
Outras produções que tratam do assunto
My Mad Fat Diary Exibida entre 2013 e 2015, a série britânica conta a história da jovem Rae Earl, do momento em que ela deixa uma clínica psiquiátrica, após ter tentado se matar. Entre as questões que levanta, traz temas como depressão, sexualidade, drogas, relação com o corpo. É baseada no livro “My Fat, Mad Teenage Diary” (Meu Diário Adolescente Gordo e Louco, em tradução livre), de Rae Earl, que registrava sua vida em diários como método terapêutico. 
As Melhores Coisas do Mundo O filme da diretora Laís Bodanzky, lançado em 2010, é uma produção brasileira que também toca em temas relevantes da adolescência. Conta a história de Mano (Francisco Miguez), de 15 anos, que, além das questões da idade, precisa lidar com a separação dos pais. Entre outras questões apresentadas pelo filme, há a história do irmão mais velho de Mano, Pedro (Fiuk), que sofre de depressão.
Klass A produção estoniana de 2007, dirigida por Ilmar Raag, é baseada no episódio do massacre de Columbine (EUA). O filme examina o cotidiano de Joosep (Pärt Uusberg), vítima de sistemático bullying no ensino médio. De forma inusitada, ele ganha um aliado Kaspar (Vallo Kirks). O filme se passa sob o ponto de vista dos rapazes, que, por fim, são autores de um atentado na escola.

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